TIA CIATA
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CONCEITO DE DÍASPORA
O termo diáspora, em grego antigo, significa "dispersão". Atualmente, a palavra se refere ao deslocamento, na maioria das vezes forçado ou incentivado, de grandes massas populacionais.
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A DIÁSPORA JUDAICA
O exemplo mais conhecido de diáspora é a diáspora judaica. O termo define a dispersão dos judeus pelo mundo. Expulsos da Palestina há mais de dois mil anos, os judeus foram radicalmente perseguidos durante a Segunda Guerra Mundial. Pelo menos, 6 milhões foram exterminados nos campos de concentração, vítimas do holocausto nazista. Após a Segunda Guerra, os judeus começaram reconstituição de um Estado próprio na Palestina. Com a criação de Israel em 1948, a diáspora judaíca terminou. Porém este fato gerou e gera até hoje uma série de conflitos entre judeus e árabes, principalmente, na Faixa de Gaza. A guerra entre esses povos vizinhos é amplamente divulgada nos meios de comunicação e mobiliza toda a comunidade internacional.
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A DIÁSPORA AFRICANA
Outro exemplo de diáspora é a Diáspora africana. Assim como os judeus, os descendentes de africanos também se espalharam pelo mundo. A diferença é que esses povos o fizeram como resultado da escravidão. Dispersos nos Estados Unidos, Canadá, Caribe, América Central, América do Sul, Europa e Ásia, por mais que as suas tradições fossem reprimidas ou aniquiladas, os descendentes de africanos deram inicio a um extraordinário processo de resistência, através da criação e re-criação de uma memória cultural. Expostos a novas redes de interação, os africanos misturaram as suas múltiplas culturas com a realidade de cada região para onde foram deslocados, reinventando-se.
No Brasil, por exemplo, a herança africana está presente em todas as expressões mais representativas da "identidade cultural brasileira". A reunião de diferentes religiões e cultos africanos num mesmo espaço (o terreiro de candomblé) foi determinante nesse processo. É a partir dele que decorre a música, as comidas, a estética e os diversos costumes afro-brasileiros, tão característicos do nosso país. Em princípio, o sonho de todo escravo era o de retornar para a sua terra e, enquanto isso não era possível, deveriam recriá-la aqui para buscar uma identidade, uma noção de “pertencimento”. Foi através dessas memórias que uma África longínqua no espaço e no tempo, "acessada" através da religião e da cultura, tornou-se mágica, mítica e assim foi preservada.
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A DIÁSPORA BAIANA
Mas, para isso, outra diáspora, essa dentro do próprio território brasileiro, também foi fundamental: a Diáspora baiana. No final do século XIX, com a abolição da escravatura no Brasil, um grande contingente de negros baianos, em busca de melhores oportunidades, passa a se deslocar para o Rio de Janeiro, a capital do país naquela época. O grupo baiano iria se situar na parte da cidade onde a moradia era mais barata, na Saúde, perto do cais do porto, onde os homens, como trabalhadores braçais, buscavam vagas na estiva.
A região passou a se chamar Pequena África, devido à grande quantidade de descendentes de africanos, em grande parte, baianos que se concentravam lá. A vivência de muitos desses como alforriados em Salvador de onde trouxeram o aprendizado de ofícios urbanos, e às vezes algum dinheiro poupado, além da experiência de liderança em candomblés, irmandades, nas juntas ou na organização de grupos festeiros, fariam da comunidade baiana uma espécie de liderança negra no Rio de Janeiro, a partir da Pequena África.
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AS TIAS BAIANAS
A comunidade baiana tinha nas mulheres o foco central da organização familiar. Eram as conhecidas “Tias baianas”. Grandes cozinheiras, líderes religiosas e também festeiras, visto que para os afro-baianos a religião, a comida e a festa são indissociáveis. Ícones da cultura afro-baiana difundida no Rio de janeiro a partir do fim do século XIX, essas “Tias Baianas” realizavam regularmente encontros, noitadas regadas a muita música, comida e bebida. E foi nesse ambiente, que uma das mais conhecidas expressões musicais do Brasil tomou corpo e se desenvolveu: o samba.
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TIA CIATA E O SAMBA DA BAHIA
Dentre todas as baianas, nenhuma se tornara tão importante e conhecida como Hilária Batista de Almeida. Tia Ciata, como era conhecida, nasceu em Santo Amaro da Purificação no dia de São Jorge, 23 de abril, em 1854. Mudou-se para o Rio por volta de 1870 e, embora fosse ainda muito jovem, já tinha participado da fundação da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, outra cidade do Recôncavo baiano. No Rio de Janeiro, Tia Ciata realizou algumas das mais disputadas festas da época. Segundo a História, foi em sua casa, durante uma dessas reuniões, que em meio a estribilhos e batuques, surgiria a primeira composição musical a ser registrada como Samba.
Tia Ciata era respeitada por toda a comunidade negra do Rio de janeiro. Casada com João Batista da Silva, também negro e baiano, que havia cursado alguns anos de medicina em Salvador e que ocupava o cargo de funcionário do gabinete do Chefe da Polícia, Ciata estava razoavelmente protegida em sua casa contra as tempestuosas batidas policiais de repressão à macumba, ao samba e à capoeira. Por isso, e por seu carisma, reunia em torno de si uma comunidade de sambistas, chorões, jogadores, filhos e filhas-de-santo. Segundo Pixinguinha, cujo apelido era Ogum Bexiguento, "tocava-se choro na sala e samba no quintal". Isto porque o choro era permitido pela polícia, enquanto o samba era considerado música de marginais, reprimida e, durante algum tempo, até proibida.
Sambava-se no quintal sem que a polícia batesse à porta. Entre os freqüentadores, estaria a nata de compositores do samba do início do século, a exemplo de Donga, Sinhô (o Rei do Samba), Pixinguinha, Hilário Jovino Ferreira, João da Baiana, China (irmão de Pixinguinha), Heitor dos Prazeres e tantos outros. Foi através dessas reuniões, onde a música e o jogo se misturavam, que foi criado o samba "Pelo Telefone" de autoria de Donga. Embora antes disso, na Bahia, o compositor Xisto Bahia já tivesse gravado “Isto é bom”, o registro da música não a classificava como samba. Por este motivo, “Pelo Telefone” ficou conhecido como primeiro samba gravado, com autoria identificada.
Como era comum às mães-de-santo da época, Tia Ciata cultuava seus orixás e ao mesmo tempo era católica, sendo personagem emblemático da Festa da Penha no Rio. Suas festas para Cosme e Damião e para sua Oxum eram afamadas e concorridas. Depois de louvar os orixás, ia para o quintal exibir seus dons de partideira. Ali, aconteciam as rodas de partido-alto e dançava-se o "miudinho", no qual dizem que Ciata, como uma perfeita filha de Oxum, era inigualável. Também era improvisadora, cantadeira, passista, além de cozinheira, como suas irmãs no santo, as outras tias, que juntas mantinham os fogões de lenha acesos por dias seguidos, com os quitutes quentinhos para quem chegasse para "brincar o samba" em seu casarão. As festas chegavam a durar uma semana, como afirmam alguns registros da época.
A popularidade de Tia Ciata era enorme e por isso ela era respeitada como se fosse a mãe dos muitos filhos sambistas que no Carnaval desfilavam seus ranchos diante de sua casa. O mesmo se dava com pessoas de todas as camadas sociais da cidade do Rio de Janeiro. Tia Ciata e seus filhos-de-samba popularizaram o ritmo que ela, entre outros, trouxeram de Salvador para o Rio de Janeiro, difundindo essa cultura para seus descendentes e para os que dela se aproximaram, extravasando seu papel de sacerdotisa dos deuses africanos e dos cultos e ritos ancestrais para o de incomparável festeira, mãe-de-santo e mãe do samba.
DORIVAL CAYMMI
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A BAHIA
Local de chegada dos primeiros portugueses e dos primeiros africanos no Brasil, a região que viria a ser o estado da Bahia começou a ser povoada em 1534. Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral, fundou Salvador, que se tornou a primeira capital do país em 1549, sendo por muitos anos a maior cidade das Américas.
A presença maciça de escravos trazidos da África para trabalhar nos engenhos de açúcar fez da Bahia, especialmente do Recôncavo Baiano, uma região com grande influência de diversas culturas africanas.
Berço do Brasil, a Bahia conserva um rico acervo de obras religiosas e arquitetônicas, assim como as mais típicas e variadas manifestações culturais populares. A influência africana na religião, na culinária, na dança, na música e em todas as áreas artísticas, sincretizadas com as culturas portuguesa e indígena, fazem da Bahia ainda hoje um dos mais importantes centros culturais do país.
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DORIVAL CAYMMI
Nascido na Bahia, em Salvador, no ano de 1914, Dorival Caymmi se tornou um dos nomes mais importantes da nossa MPB. Cantor, violonista e compositor, criou inspirado pelos hábitos, costumes e tradições do povo baiano. Tendo como forte influência a música negra, desenvolveu um estilo pessoal de compor e cantar, demonstrando espontaneidade nos versos, sensualidade e riqueza melódica. Nas composições de Caymmi, a Bahia surge como um local exótico com um discurso típico que se estabelecera nas primeiras décadas do século XX. Referências à cultura africana, à comida, às danças, à roupa, e, principalmente à religião, fizeram da obra de Caymmi um dos retratos mais emblemáticos e conhecidos da Bahia. Com as suas músicas e a difusão de seu trabalho não só no Brasil inteiro como também nos Estados Unidos e na Europa, Caymmi contribuiu no aceleramento do processo da identificação da cultura brasileira com a cultura negra associada em grande parte à Bahia. A imagem do Brasil, por exemplo, difundida por Carmen Miranda tem as suas raízes em parte na cultura baiana. E ainda que quase todo o mundo nos Estados Unidos ou na Europa associe hoje o samba com o Brasil em geral, e talvez com o Rio de Janeiro em particular, é um consenso que a raiz do samba se encontra na Bahia. Ao lado de Carmen Miranda e Ari Barroso, Caymmi contribuiu para difundir uma imagem do Brasil que é em boa parte uma imagem que antes se associava com a Bahia, principalmente com a cultura negra baiana. Muitas das suas canções viraram clássicos que moram na memória coletiva e ajudaram a construir uma noção de identidade brasileira. São exemplos O que é que a baiana tem? É doce morrer no mar; O mar; Você já foi à Bahia?; Marina; Nem eu; João Valentão; Dora; Das Rosas; A lenda do Abaeté; Suíte dos Pescadores; Maracangalha, entre outras.
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VIDA E OBRA
A iniciação musical de Caymmi começou ainda criança, ouvindo parentes que tocavam piano. Seu pai, além de funcionário público, era músico amador. Tocava, além do piano, bandolim e violão. A mãe, doméstica, cantava em casa. Ouvindo os parentes, o fonógrafo, e depois a vitrola, tomou gosto pela música e nasceu a vontade de compor. Ainda menino, cantava em coro de igreja com sua voz de baixo-cantante. Concluindo o primeiro ano ginasial, aos 13 anos interrompe os estudos para trabalhar como auxiliar de escritório na redação do jornal O Imparcial. Quando o jornal fecha em 1929, passa a trabalhar como vendedor de bebidas.
Por volta de 1930, sem nunca ter estudado música, já se acompanhava ao violão, que aprendeu a tocar sozinho, criando um estilo muito pessoal. Neste ano escreve a primeira de suas composições, a toada ''No sertão''. Aos 20 anos, estreou cantando e tocando violão em programas na Rádio Clube da Bahia. Em 1935, ganhou um programa ''Caymmi e Suas Canções Praieiras''. E em 1936, aos 22 anos, como compositor, venceu um concurso de músicas de carnaval com o samba ''A Bahia também dá''. O prêmio: um abajur de cetim cor-de-rosa.
Estimulado por Gilberto Martins, diretor da Rádio Clube da Bahia, resolve tentar a sorte no sul. Em abril de 1938, aos 23 anos, Dorival pega um ita (nome dado aos navios que transitavam entre o norte e o sul do Brasil) rumo ao Rio de Janeiro, com o objetivo de realizar o curso preparatório de Direito e talvez arranjar um emprego como jornalista, profissão que já havia exercido em Salvador. Hospedou-se na pensão da Dona Julieta, no meio de estudantes e comerciários. Com a ajuda de parentes e amigos, começou a fazer bicos na imprensa. Empregado no jornal Diários Associados, continuava a compor e a cantar. Nessa época, conheceu Samuel Wainer e Carlos Lacerda.
Na Revista Cruzeiro, foi apresentado por um amigo a um diretor da Rádio Tupi, de propriedade de Assis Chateaubriand. Em 24 de junho de 1938, na noite de São João, estreou na rádio cantando duas cações, mas sem contrato assinado. Depois de se sair bem em suas aparições como calouro, começou a cantar dois dias durante a semana e aos domingo no programa Dragão da Rua Larga, sucesso na época.
Num desses programas, com ''O Que é Que a Baiana Tem'', composta ainda em 1938, chamou a atenção de uma empresa de cinema, que comprou os direitos da música para Carmen Miranda. A música do jovem compositor, seu primeiro e maior sucesso, substituiu ''Tabuleiro da Baiana'', de Ary Barroso, no filme ''Banana da Terra''. ''Tabuleiro'' foi recusada pelo alto valor cobrado por Ary Barroso, no auge da sua carreira. A música trouxe o reconhecimento do compositor baiano, lançou Carmen Miranda em uma carreira meteórica no exterior, e levou Caymmi aos ouvidos da elite brasileira.
Em setembro de 1939, Dorival Caymmi lançou ''Rainha do Mar'' e ''Promessa de Pescador''. A partir de novembro do mesmo ano, a convite do músico Almirante, passou a atuar na Rádio Nacional. Foi lá, num programa de calouros, que conheceu a cantora Stella Maris, então com os seus 17 anos, com quem se casou em abril de 1940.
Ainda em 1939, sua música ''O Mar'' foi colocada em um espetáculo promovido pela então primeira-dama Darcy Vargas. Daí em diante, seu prestígio foi se ampliando.
No carnaval de 1939, a convite da amiga Carmen Miranda, Caymmi foi ao Baile do Flamengo no Rio de Janeiro, onde conheceu o artista plástico Carybé, do qual se tornou amigo íntimo. No mesmo ano, ao passar pela Avenida Rio Branco, perto do Teatro Municipal, conheceu o escritor Jorge Amado por acaso. Apresentados por um amigo em comum como ''conterrâneos'', tornaram-se grandes amigos. Antes mesmo de chegar ao Rio, Dorival já ouvira falar de Jorge Amado. Os estudantes baianos comentavam os primeiros livros do escritor e seu teor antiditadura. A amizade se fortaleceu, mesmo durante o exílio de Jorge Amado na Era Vargas, e os encontros tornaram-se rotina. Foi numa dessas visitas, em uma feijoada na casa dos pais de Jorge Amado, que nasceu a canção ''É Doce Morrer no Mar''. Numa brincadeira, Dorival pediu a todos que fizessem versos em cima do verso ''é doce morrer no mar'', marca de Guma, personagem do livro ''Mar Morto''. Outras músicas em parceria dos dois são ''Modinha de Gabriela'', ''Beijos pela noite'', ''Modinha para Teresa Batista'', ''Retirantes'', ''Essa Nega Fulô'', entre outras.
Dorival firma-se então como autor de músicas com temáticas ligadas às tradições populares, gravando em 1940 ''Samba da Minha Terra'' e, no ano seguinte, ''A Jangada Voltou Só''. A partir do final dos anos 40, passa a se dedicar ao samba-canção, que vinha sendo praticado desde Noel Rosa até Ary Barroso, com temática mais urbana. Prevaleceram temas românticos e intimistas. A música mais emblemática dessa fase é ''Marina'', gravada em 1947 por Dick Farney.
Em 1943, Caymmi passa a frequentar um curso de desenho na Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, dedicando-se à pintura com intensidade por dois anos. Nada que o fizesse abandonar a música.
Nos anos 50, Caymmi é tomado como referência pelas cabeças da bossa nova. Sua música foi um dos elementos mais importantes para o estilo, desenvolvido por João Gilberto, que gravou uma série de composições suas, como ''Rosa Morena'' e ''Saudade da Bahia''. Tom Jobim passou a destacar o caráter moderno da composição de Caymmi. Data daí o começo da grande e longa amizade que os dois cultivaram e que se estendeu às famílias.
Em 1965, traduzida para o inglês por Ray Gilbert, a valsa-samba ''Das Rosas'' estourou nos Estados Unidos na gravação do cantor americano Andy Williams. O sucesso o levou àquele país, onde fez shows, gravou um programa de TV e um LP, passando quatro meses em Los Angeles. Em 1968, o governo da Bahia retribuiu-lhe a divulgação internacional da cultura com uma casa de presente, em Salvador. Ele voltou a morar na cidade por algum tempo, quando aumentou sua ligação com o candomblé, tornando-se obá (espécie de ministro) do terreiro Axé Opó Afonjá.
Em 1972, foi condecorado com a Ordem do Mérito do Estado da Bahia. Nesse mesmo ano, lançou um LP que trazia a ''Oração da Mãe Menininha'', homenagem à Menininha do Gantois nos seus 50 anos de mãe-de-santo. Mais tarde, ele criaria, também, ''Modinha para a Gabriela'', baseada no romance Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. A canção, interpretada por Gal Costa, foi sucesso nacional.
Importantes homenagens dentro e fora do Brasil marcaram os anos 80 para Caymmi. Em 1984, no seu septuagésimo aniversário, ele foi condecorado em Paris pelo ministro da cultura francês, Jack Lang, com a Comenda das Artes e Letras da França, atribuída a importantes personalidades culturais. No ano seguinte, inaugurou-se em Salvador a avenida Dorival Caymmi. Em 1986, no Rio, o artista virou enredo da Estação Primeira de Mangueira, com o qual a escola de samba venceu o desfile do carnaval daquele ano.
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LEGADO
De um lado, influenciado pela música de rua da Bahia, Caymmi reempregou temas e elementos folclóricos dando-lhes um novo sentido, como um primitivo. De outro, alterou o acompanhamento do violão de uma maneira que ninguém havia feito até então, como um impressionista. Por isso, representou um irresistível fator de sedução para músicos sofisticados como Tom Jobim, por exemplo.
De fato, seu estilo se constituiu num marco histórico do uso do violão entre nós brasileiros. Principalmente entre grandes autores-cantores que se acompanham ao instrumento e que revolucionaram o modo de tocá-lo. Gente como Gilberto Gil e Jorge Benjor. Mas, sobretudo João Gilberto.
João colocou-o numa nova perspectiva, na drástica seleção que fez do que era grande na tradição nacional. Ao lado das canções americanas dos anos 30, do cool jazz e do canto de Orlando Silva, a composição de Dorival Caymmi figurou na base da construção "joãogilbertiana" da bossa nova. Como afirmou Caetano Veloso, "o grande esforço de modernização de João se apoiou na modernização sem esforço de Caymmi".
Palavras e sons se acham conjugados de forma tão natural em suas canções que tudo parece espontâneo. Essa aparência da palavra cantada em Dorival Caymmi, porém, esconde um extremo rigor que torna suas canções imbatíveis do ponto de vista prosódico.
Não surpreende o longo tempo que costumava levar compondo. Com paciência e obstinação, Caymmi submeteu suas músicas a uma depuração e artesanato pouco observáveis em canção popular. Autor de uma obra relativamente pequena em número de peças (cerca de cem), mas com uma taxa de originalidade altíssima (a mais alta de todas, na música brasileira), criou dezenas de obras-primas.
Dorival Caymmi atraiu e continua atraindo centenas de cantores e cantoras que já o gravaram e interpretaram. Contudo, é consensual a opinião de que ele mesmo foi o melhor intérprete de suas canções. Ele próprio já afirmou que compunha pensando na sua voz; por isso, ninguém melhor para traduzir, em canto, suas ideias de canção.
Pouca coisa se compara à experiência de ouvi-lo cantando e tocando suas canções, sozinho. Voz, violão, poesia e melodia formam um todo de grande poder de envolvência. A voz grave e morna, cheia e doce, profunda, solta versos simples e perfeitos em sua conjugação com as frases musicais, enquanto o violão evoca o próprio murmúrio do mar, o requebro da baiana, o sinistro na lagoa do Abaeté, a graça da morena de Itapoã.
Uma poesia de essências, precisa e substantiva. Clara e doce. Bonita e sensual como as mulheres que cantou, com um misto de malícia e delicadeza. E em linguagem e dicção tão populares quanto os personagens que recriou, eternizando e universalizando a Bahia e o Brasil.
ASSIS VALENTE
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ORIGEM
Incertezas cercam a origem de José de Assis Valente. Sabe-se que Assis nasceu na Bahia, mas não se sabe onde ao certo. Ele mesmo, em reportagens, era controverso. Ora dizia ter nascido em Campo da Pólvora, Salvador, (e dizia que por isso tinha a pele "queimada") ora dizia ter nascido em Santo Amaro da Purificação. Também declarou várias vezes ter nascido entre Pateoba e Bom Jardim. A data de nascimento, segundo seus biógrafos, também é outra incógnita. Na certidão de casamento, emitida no Rio de Janeiro, consta que ele veio ao mundo no dia 19 de março de 1908, natural de Pateoba. Seus pais, segundo consta no mesmo documento, seriam José de Assis Valente e Maria Esteves Valente. Durante a vida, em nenhuma entrevista ou reportagem ele se referiu aos pais, parecendo querer ignorar seu passado.
Assis Valente teve, desde criança, uma vida bastante conturbada. Ainda pequeno, foi tirado dos pais por uma família de Alagoinhas (BA) que mais tarde se mudou para Salvador e depois para o Rio de Janeiro. No entanto, Assis continuou na Bahia, trabalhando na farmácia de um hospital e estudando desenho no Liceu de Artes e Ofícios. Pouco tempo depois, Assis foi trabalhar num circo, como orador e comediante, até o fim da década de 20 quando mudou-se para o Rio de Janeiro. Excelente desenhista, vendeu alguns desenhos e ilustrações para duas revistas cariocas. Simultaneamente começou a trabalhar como protético. Habilidoso, diziam que as suas dentaduras só faltavam falar. Foi nessa época que conheceu o alagoano José de Aguiar Dantas, com quem conviveu de 1929 até o fim da vida. Juntos, com o dinheiro que Aguiar recebeu de uma herança, montaram um laboratório de prótese. Assis, que dominava o assunto, ensinava a seu sócio que aprendia facilmente a profissão.
Assis Valente acabou tornando-se um respeitado protético, mas, a partir da década de 30, começou a mostrar sua instabilidade emocional. Um belo dia, sem mais nem menos, anunciou para Aguiar Dantas que ia passar uns tempos na Bahia e sumiu. Meses depois Assis voltou e já manifestava seu dom para a música: passava o dia inteiro cantando e batucando em cima das banquetas ou no fundo das gavetas. Extravagante, ele pagava tudo para todo mundo, mesmo sem ter dinheiro. Por isso tinha fama de rico. Amoroso, divertido e "mão-aberta", vivia rodeado de rapazes pela noite carioca. Segundo depoimentos de pessoas que conviveram com o compositor nessa época, quem o estimulou e até o ensinou a fazer sambas foi Heitor dos Prazeres (1898-1966), pintor e compositor que, em 1932, ao ouvir as primeiras músicas de Assis, incentivou-o a compor. Entre ser protético ou compositor, Assis ficou com as duas opções e, inspirado pelo modismo de falar francês e principalmente inglês, Assis compôs sua primeira obra, Tem francesa no morro.
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CARMEN
Ainda em 1932, Araci Cortes grava Tem francesa no morro, e Assis conhece sua maior intérprete, Carmen Miranda. Assis compunha sempre já pensando na pessoa que cantaria seu samba. Quando conheceu Carmem Miranda ficou boquiaberto com a cantora e desenvolveu por ela uma paixão platônica. Embora muitos afirmem que Assis Valente era homossexual, a sua opção sexual se confrontava com o sentimento que nutria por Carmen: uma enorme paixão artística pela grande musa de sua obra. A visão deslumbrante da performance da cantora, atriz e vedete no Teatro João Caetano, ainda em 1932, foi decisiva: "Esta é a pessoa para dar vida aos meus sambas", pensou Assis. Faltava a chance de dizer a ela que nenhuma composição soaria tão verdadeira em sua voz quanto as que ele fizesse.
Tentou se aproximar dela tendo aulas de violão com um homem que julgava ser o pai adotivo da cantora. Mas foi um engano. Assis decidiu então compor para Carmen um samba em exaltação à Bahia, intitulado ETC. Carmem gostou e gravou. Para o outro lado do disco, Assis compôs a famosa Good Bye, Boy.
Era o início da parceria entre o compositor e sua principal intérprete. Carmen gravaria 24 das quase 150 músicas de Assis Valente. O sucesso na voz de Carmem Miranda foi estrondoso, e Assis seguiu compondo para ela: Camisa Listada, Uva de Caminhão, Minha Embaixada Chegou, ...E o Mundo não se Acabou. Uma produção grande e impecável. Quando Carmem foi para os EUA, Assis se sentiu abandonado. Ela seria a glória e também a perdição do baiano. O jeito irreverente, a voz maliciosa, combinavam de forma incomum com as letras debochadas. Na posição de cronista do cotidiano, ele pensava em muitas de suas obras batucando no balcão do consultório, revivendo algumas cenas populares, ou temas de ampla discussão pública. Como a zombaria diante dos vaticínios apocalípticos por causa de um eclipse total, no final da década de 30, expressa em E o Mundo não se acabou (Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar/ Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar/ E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada/ Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada).
A parceria entre a voz de Carmen e a originalidade de Assis também produziu o monopólio das músicas carnavalescas da época. Na festa de 1938, não se tocava outra coisa a não ser Camisa listrada: "Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí/ Em vez de tomar chá com torrada/ Ele bebeu Parati (...) Tirou o seu anel de doutor/ Para não dar o que falar/ E saiu dizendo: Mamãe, eu quero mamar".
Geralmente solitário na vida e na arte, Assis Valente juntou sua musicalidade intuitiva com a contribuição de parceiros em encontros considerados instantâneos. Foram 46 músicas em co-autoria. Os mais freqüentes sócios musicais foram Leandro Medeiros (seis letras), Júlio Zamorano (cinco letras), Zequinha Reis e Álvaro da Silva (três letras, cada). As parcerias extemporâneas mais importantes foram com Lamartine Babo (em Janete, de 1936), Humberto Porto (Batuca no chão) e Luiz Gonzaga (com Pão duro, de 1946). Esta música, inclusive, seria praticamente toda creditada ao Rei do Baião, apesar de ele fazer questão de dizer que só a harmonização e a melodia não eram de Assis. É que nesta época, o baiano já não gozava do mesmo destaque dos anos 30.
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A SEPARAÇÃO
Fator determinante para o início das trevas a que o compositor se auto-exilou foi a viagem de Carmen Miranda. Em 1939, o empresário americano Lee Schubert assiste a uma apresentação dela no Cassino da Urca. Decide que a América precisa conhecer aquela adorável pequena. Ela muda para os Estados Unidos, junto com o grupo Bando da Lua, que freqüentemente gravava as músicas de Assis. A ação de Schubert foi como um assalto na carteira sentimental do baiano. Ele perdia dois intérpretes favoritos, a grande musa e ainda a inspiração para compor pensando na voz que entoaria as frases.
Quando soube que Carmem viria ao Brasil, Assis correu para compor duas músicas para ela: Recenseamento e Brasil Pandeiro. Carmem gravou a primeira e disse, sobre a segunda: "Assis, isso não presta. Você ficou borocoxô". Isso magoou profundamente o compositor, por saber que a música era de boa qualidade.
"Brasil Pandeiro", a música mais famosa do compositor, acabou sendo gravada pelos Anjos do Inferno em 1940, com grande êxito e regravada pelo grupo Novos Baianos mais de 30 anos depois, de novo com sucesso. Outros grupo vocais também popularizaram sambas do compositor, como o Bando da Lua, que gravou "Maria Boa" em 1936 ou o Quatro Ases e Um Coringa, que gravou "Boneca de Pano" em 1950. Outro grande sucesso foi a marcha natalina "Boas Festas", lançada por Carlos Galhardo em 1933 e regravada em 1941 e 1956.
Em 23 de dezembro de 1939, sem avisar aos amigos, sem fazer festa ou alarde, ele casa com a datilógrafa Nadyle da Silva Santos, que ainda nem completara 20 anos. Um ano e um mês depois, nascia Nara Nadyle. Mas o que era a promessa do primeiro núcleo familiar na vida de Assis Valente virou apenas mais uma lembrança fugaz da felicidade. A separação é pouco tempo depois do nascimento da filha, que passa a ser criada pelos avós, com permissões para visitas ligeiras.
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O FIM TRÁGICO
Aos poucos, suas músicas caíam no esquecimento. Ainda no ano de 1941, afundado em dívidas e inseguro quanto ao seu futuro, Assis tenta o suicídio pela primeira vez, pulando do alto do Corcovado. Foi salvo por uma árvore, que impediu a queda. Acabou sendo resgatado pelos bombeiros e, mais tarde, depois de recuperado, compôs "Fez Bobagem", canção marcante interpretada com grande sucesso por Aracy de Almeida. Mas sua carreira bem-sucedida como compositor não foi suficiente para mantê-lo vivo. Na década de 50, Assis entra em depressão e procura mais uma vez a morte, cortando os pulsos, sem conseguir o intento. Aos poucos, vai mergulhando na melancolia, afastando-se de todos e, por fim, no dia 11 de março de 1958, consegue o que já buscara anteriormente. Em um banco da praia do Russel, conseguiu matar-se ingerindo guaraná com formicida. Muitos artistas regravaram a obra de Assis Valente, como Nara Leão, Chico Buarque e Adriana Calcanhotto. Na década de 90 o musical "O Samba Valente de Assis", sobre a trajetória do compositor, foi encenado no Rio de Janeiro. A música "Brasil Pandeiro" voltou a ser extremamente popular em 1994, graças a uma campanha publicitária relacionada à Copa do Mundo.
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LEGADO
Assis Valente e Dorival Caymmi são os compositores baianos mais importantes da história da canção brasileira anterior à bossa nova. Caymmi, justificadamente, tem sido sempre cantado e laureado ao longo dos anos. Assis, por incrível que pareça, é pouco lembrado e, por apenas meia dúzia de canções (Brasil pandeiro, Boas festas, Fez bobagem, Camisa listada, Alegria e E o mundo não se acabou), todas clássicos da nossa música. Valente consegue ser ufanista e crítico a um só tempo, no samba-choro Recenseamento, obra-prima gravada por Carmem Miranda:
"Em mil novecentos e quarenta/ lá no morro começaram o recenseamento/ e o agente recenseador/ esmiuçou a minha vida que foi um horror/ e quando viu a minha mão sem aliança/ encarou para a criança que no chão dormia/ e perguntou se meu moreno era decente/ se era do batente ou era da folia/ / obediente, sou a tudo que é da lei/ fiquei logo sossegada e falei então/ o meu moreno é brasileiro, é fuzileiro/ e é quem sai com a bandeira do seu batalhão/ a minha casa não tem nada de grandeza/ nós vivemos na fartura sem dever nenhum tostão/ tem um pandeiro, tem cuíca e tamborim / um reco-reco, um cavaquinho e um violão".
Há nestes versos a descrição da pobreza aliada à consciência do manancial de cultura de origem popular, no caso, a música - como seminal pra definir nossa identidade. Mais adiante, a protagonista do samba passa do concreto ao simbólico na exibição de suas (nossas) riquezas: "Fiquei pensando e comecei a descrever/ tudo tudo de valor que o meu Brasil me deu/ um céu azul, um pão de açúcar sem farelo/ um pano verde e amarelo/ tudo isso é meu".
Em Elogio da raça, Assis é abusadamente baiano, quando diz que "autoridade tem que dar/ carta branca para o nego vadiar" e justifica: "pois ele é um cavalheiro/ e basta ser brasileiro/ pra saber se comportar". Ao contrário da malandragem cantada pelos sambistas do Estácio e por Noel Rosa, a vadiagem em Assis adquire status de bem cultural, sempre de baixo pra cima, subvertendo a oficialidade.
Porém todo enaltecimento da alegria e da "gente bronzeada" deixam entrever uma poética do dilaceramento, como em Alegria: "vou cantando/ fingindo alegria/ para a humanidade não me ver chorar". Muito já se falou da bissexualidade de Assis e da sua nebulosa origem familiar pra justificar o sujeito dividido que transparece em suas canções, mas o que importa aqui é demonstrar a pertinência estética da sua música, presente em canções menos conhecidas, mas tão boas quanto seus clássicos. Por tudo isso, Assis Valente merece ser revisto, cantado, recontado e redescoberto para o bem de quem quer que tenha acesso a uma obra tão rica e reveladora.
EDISON CARNEIRO
1
ORIGEM
“Não temos pesquisadores do negro. Não nos aproximamos, sequer, das margens do grande rio de alegria e beleza que o escravo, com suor e sangue, fez surgir no cenário de seus sofrimentos. Mas o rio corre - e um dia se misturará definitivamente a todas as águas que formam a nacionalidade brasileira. Se não o explorarmos, se não utilizarmos a sua energia, se não navegarmos em todo o seu curso, tanto pior para nós.” É dessa maneira que, em 1957, no livro A Sabedoria Popular, o historiador, etnólogo e folclorista Edison Carneiro definia a situação da “cultura negra no Brasil”.
Edison Carneiro nasceu a 12 de agosto de 1912, na Bahia, onde se diplomou em Direito em 1935 e viveu até fevereiro de 1939, quando transferiu sua residência para o Rio de Janeiro. Manteve-se, no entanto, sempre muito ligado à terra onde nasceu. Aos 16 anos começara a publicar artigos e crônicas na imprensa local. Aos 18 anos, foi membro da ‘Academia dos Rebeldes’, que congregou nomes como Jorge Amado e Aydano Couto Ferraz, os quais defendiam a cultura local e em particular os cultos de candomblé, que eram considerados práticas criminosas. A partir de 1933, empolgado pela beleza mística dos cultos populares de origem africana, passou a dedicar-se ao seu estudo, havendo, em 1937, chegado a fundar uma federação das casas de candomblé baianas, sob a denominação de União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia.
Iniciou sua carreira de jornalista através das páginas do Estado da Bahia, na qualidade de colaborador, em seguida, redator efetivo. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, trabalharia em O Jornal. Do Rio de Janeiro, comissionado pelo Museu Nacional, voltou à Bahia em agosto de 1939, a fim de recolher material sobre os cultos afro-brasileiros e encomendar a feitura de bonecas de pano, em tamanho natural, com as vestimentas e insígnias do orixás, material este que pode ser visto no Museu da Quinta da Boa Vista. Publica Religiões Negras (1936), Negros Bantos e Castro Alves - Ensaio de Compreensão (1937). Fixado, definitivamente, no sul do país, passou a dividir o seu tempo entre as atividades jornalísticas e trabalhos de tradução para o português, de obras escritas em inglês e francês, por solicitação de editores sulistas. Em 1946 publicou, em edição mexicana, Guerra de los Palmares, que surgiria, um ano após, no Brasil, sob o título O Quilombo dos Palmares. Em 1947, publicaria Trajetória de Castro Alves, e em 1948, o MAB editaria seu mais famoso livro - Candomblés da Bahia.
Em 1949 ingressaria na Confederação Nacional da Indústria, de onde se transferiria, em 1955, para o Serviço Nacional da Indústria (SESI), onde permaneceu até a sua morte. Foi ainda redator do serviço público do MEC. Publicou Antologia do Negro Brasileiro (1950), Linguagem Popular da Bahia (1951); A Cidade do Salvador (1954), A Conquista da Amazônia (1956), O Negro em Minas Gerais e A Sabedoria Popular (1957). Durante essa época foi um dos principais redatores do Última Hora e do Jornal do Brasil. Em 1959 iniciaria sua carreira de professor, encarregado do ensino da disciplina Bibliografia do Folclore, no Curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional. Nessa mesma ocasião participou do grupo de trabalho que estruturou a Campanha de Defesa do Folclore. Publicou A Insurreição Praieira (1960) e Samba de Umbigada (1961). Foi redator da Carta do Samba em 1962. Mais tarde passa a ministrar, na condição de professor visitante, cursos em várias Universidades brasileiras, entre as quais, as de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Sul. Editou os livros Ladinos e Crioulos (1964) e Dinâmica do Folclore (1965). Em 1966 foi nomeado membro da comissão criada pelo Ministério das Relações Exteriores para organizar a representação brasileira no 1º Festival Mundial de Arte Negra, a realizar-se em Dacar. De Dacar, onde chefiou a Delegação do Brasil, seu primeiro contacto com a África negra, atendendo a convite especial da UNESCO, seguiria para o Daomé (atual Benin), onde participaria do Colóquio África-América Latina. Visitou outros países africanos, entre eles o Togo, a Costa do Marfim e a Nigéria. Publicou nesse ano, em francês e em inglês, um artigo sobre as religiões afro-brasileiras sob o título de Contribuição da África à Civilização Brasileira.
De volta ao Brasil, continuaria a escrever artigos e verbetes, para jornais, revistas e enciclopédias, entre essas, a Enciclopédia Barsa, a Delta-Larousse e a Mirador Internacional, e iniciou a revisão e anotação de obras clássicas da nossa história social, entre elas, as Cartas de Vilhena, reeditadas em 1969, na Bahia, sob o título A Bahia no Século XVIII, e o trabalho pioneiro de Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil. Nessa fase publicou artigos no Jornal do Comércio, do RJ, em A Tarde, da Bahia, em Brasil Açucareiro, na revista Planeta e em Afro-Ásia, revista do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, enquanto outros seriam publicados no exterior, nos EUA, União Soviética, México e Argentina. Por toda a sua grande atividade literária, foi agraciado, em 1969, pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Machado de Assis. Foi ainda condecorado com a Medalha Sílvio Romero pelo Governo da Guanabara e com a Medalha Euclides da Cunha, pela cidade de São José do Rio Preto.
2
INOVAÇÃO
Carneiro era também comunista de carteirinha e advogou a introdução de práticas socialistas num Brasil dado a paternalismos. Diferente do modelo europeu, que surge na era moderna e se dedica a conservar expressões culturais antigas e partilhadas por gente comum, nosso estudioso procurou combinar manifestações culturais com práticas socialistas. Mutirões seriam exemplos de folclore, uma vez que congregavam a população pobre, agora ‘operária’, e o mesmo pode ser dito dos sambas e capoeiras, entendidos como manifestações da classe trabalhadora.
O etnólogo, o homem negro-mestiço que se integraria – como intelectual bem formado nos cânones europeus – aos valores ancestrais da sua gente, Edison Carneiro, teve um papel decisivo na aproximação de Jorge Amado com a cultura plural e mestiça da Bahia. Desde muito jovem, o então poeta e futuro etnólogo conduzia os outros rebeldes aos terreiros de encantado, onde foi dignificado com o posto de ogã. Ao saudar a aparição do seu primeiro livro de estudos antropológicos, Religiões negras: Notas de etnografia religiosa, de 1936, Jorge Amado não somente ombreia o jovem estreante de apenas 24 anos aos clássicos do tema e dos estudos correlatos (Nina Rodrigues, Artur Ramos, Manoel Quirino ou mesmo o grande Gilberto Freire) como ressalta a importância até então impar do trabalho de Edison Carneiro: “um estudioso da cultura negra que viveu a realidade concreta do seu objeto de estudo, por se tratar, ele-mesmo, de um entre os muitos agentes do mundo de mistérios dos orixás. É, além de tudo, um estudo feito por um homem da mesma raça que os estudados. Edison Carneiro nesses estudos nada tem de diletante. Com a raça africana da Bahia, ele sofreu, ele riu em grandes gargalhadas, ele dançou nas macumbas, comeu comidas de estranhos nomes, amou. É um deles e assim esse estudo, esse depoimento, ganha em força e em verdade. Não fala um estudioso das religiões Negras. Fala um membro das religiões negras que é ao mesmo tempo um dos sujeitos mais cultos do Brasil”.
Convém afirmar que a etnografia de Edison Carneiro não tinha nada da visão exterior e estereotipada evidenciada por um Nina Rodrigues, por exemplo. Daí, o jovem rebelde ter sido capaz – conforme já na época sublinhava Jorge Amado – de reafirmar ou corrigir as especulações anteriores fundado tanto em pesquisas de campo quanto em “documentação notável”.
O futuro autor de Jubiabá encerra o seu artigo sobre Religiões negras, de Edison Carneiro, com uma confissão que fornece os indícios para que procuremos mais no companheiro de geração e menos no olímpico Gilberto Freire as bases da sua visão sociológica do negro: “Eu o admiro e o amo como a um irmão que sabe muito, que todo dia me ensina uma coisa nova”.
3
POESIA
Em 1928, quando começam as atividades etílicas, boêmias e intelectuais da Academia dos Rebeldes, tanto Jorge Amado quanto Edison Carneiro, os dois mascotes do grupo, tinham apenas dezesseis anos. Antes de se aventurarem nas páginas mais duradouras dos livros, ambos os escritores se valeram das voláteis páginas dos jornais para dar vazão à inquietação intelectual e à rebeldia incontida. Assim, Edison Carneiro publica uma coletânea formada por trinta poemas em moldes de folhetim. Embora esta palavra seja habitualmente usada para os romances e novelas editados, em fragmentos, nas páginas dos jornais, acreditamos ser também a que melhor define a publicação igualmente fragmentária de Musa Capenga nas colunas do diário A Noite, de Salvador, no período de 24 de setembro a 27 de novembro de 1928.
Curiosamente, embora chamado de poeta, o fato da existência do livro em folhetim não era lembrado mesmo pelos amigos e admiradores que ainda trazem na memória a atuação intelectual de Edison Carneiro. E tal continuaria ocorrendo não fosse a acuidade investigatória de Gilfrancisco. Pesquisando documentos sobre Pinheiro Viegas e a Academia dos Rebeldes, este bendito e ladino “rato de arquivos e bibliotecas” que é Gilfrancisco atirou no que viu e acertou no que não viu: resgatou, para surpresa de todos nós, o tão citado e até então desconhecido poeta Edison Carneiro, revivificado num retrato de corpo inteiro.
A Musa Capenga, de Edison Carneiro, é uma coletânea formada por trinta poemas curtos e vazados em versos de deliberada irreverências modernistas. O insólito da dicção corre por conta da ousada originalidade de um talento intelectual em busca da sua própria expressão, que só chegaria a termo anos mais tarde através da prosa ensaística. Aqui está um poeta ainda sem maiores recursos, sem lograr a plena identificação com o leitor, mais já despontando como um intelectual do seu tempo, sensível às questões que identificariam sua futura obra de ensaísta.
Bem verdade que, muitas vezes, a abordagem dos temas ainda estava preso aos preceitos e preconceitos que viriam a ser, por ele mesmo, derrubado, como o tratamento dispensado ao negro, freqüente na época mas hoje rechaçado como estratégia de afirmação. Num poema intitulado “Ralhando”, o objetivo visado é inteiramente apagado, na perspectiva do leitor de hoje, pela experiência do irreverente humor do poema piada que fecha o texto.
O poema é aberto com os versos:
Ah, negra faceira!
Que tolice, minha negra,
[...]
que você tenha
espichado
seu cabelo.
Para que
essa beleza
artificial [?].
Ao começar defendendo a identidade negra e a valorização dos encantos inerentes a esta raça, Edison Carneiro antecipa-se a todos que viriam a exaltar as qualidades positivas do negro, a exemplo de Jorge Amado e de Dorival Caymmi, na sua própria geração, ou de Caetano Veloso, numa das gerações posteriores. Mas o poema perde a sua eficiência e se desvia do objetivo pretendido quando cede à piada de gostos duvidosos. Para censurar o fato da sua “negra faceira” ter transformado os cabelos em “ligas melenas”, isto é, em cabelos longos e soltos, ele cede a uma forma de humor corrosivo, senão depreciativo e desprovido de graça. Fazendo referência às estradas de ferro em construção na época, o jovem poeta Edison Carneiro arremata:
E você
bem que podia
concorrer
com o pixaim
para cercá-las
a farpas de arame.
A conclusão do poema, nada poética, sem dúvida, surpreenderia ao futuro leitor do habitualmente correto e atento etnólogo Edison Carneiro. Pode-se argumentar que, do mesmo modo que o irreverente compositor Gabriel, o Pensador, faz humor em “Loura burra”, o poeta modernista dos anos vinte estaria adotando similar efeito cômico. Mas, na perspectiva atual, quando se afirmam os valores de uma raça e de uma cultura anteriormente humilhadas pela escravidão e pela posterior condenação à desgraça econômica, qualquer sátira que permita ser usada como valoração negativa deve ser evitado, para não reforçar os preconceitos.
Não esqueçamos, porém, que o momento vivido por Edison Carneiro era outro e que o conceito persecutório do politicamente correto, útil por um lado e caricato por outro, ainda não ditava a conduta norte-americana, politicamente incorreta. Pulando do político para o poético, digamos, portanto, que não é poeticamente correto julgar um texto dos anos vinte numa perspectiva de quase um século depois.
Mas em compensação ao mau gosto (e ao arame farpado) da chave de ouro besouro do poema “Ralhando”, um pouco antes, em “Ameaça”, o poeta-rebelde vai buscar na cultura negro-mestiça da Bahia e nas suas crenças mais fortemente arraigadas o tema e o título do texto. Diante de uma historinha de amor malsucedida e da desditosa dor de cotovelo, o jeitinho brasileiro mais uma vez se aplica através da usual ameaça mística, evocando a macumba:
Vou ao Pau Miúdo
e trago,
para botar na sua porta
uma coisa feita,
dessas que fazem
morrer de amor,
preparada,
minha beleza,
pelas mãos
do grande mago
Jubiabá.
Jorge Amado, anos depois, tomaria Jubiabá como tema de um dos seus romances; muito provavelmente em conseqüência do conhecimento de Edison Carneiro com o babalorixá do Pau Miúdo que incorporava o caboclo Jubiabá. Este poema é talvez a primeira referência literária a Jubiabá que, mais recentemente, na década de oitenta, reapareceria nos versos da chamada, axé music, na sua fase criativa e ainda não desvirtuada pela homofonia da indústria cultural. Jerônimo, que foi um dos mais importantes criadores da música baiana dessa época, evocava Jubiabá e seus poderes sobre os protegidos pelos despachos e padês, nos versos do poema musical que diz:
Toda nega faz amor com ele,
Toda branca tem o maior tesão.
Confirmam-se assim, meio século depois, os poderes e as delícias dos feitiços de amor.
Os incipientes poemas de Edison Carneiro, em Musa capenga, não obstante denunciarem a procura de uma elocução literária inovadora e de uma personalidade expressiva característica do seu autor, servem de manancial a muitos cursos de água que podem ser derivados da sua cachoeira de sugestões e aportes culturais.
Bem verdade que o próprio autor – apesar dos dezesseis anos, idade em que a razão e a autocrítica não são parceiras constantes – vê a precariedade da sua musa ou do seu invento artístico, propondo como referencial definidor o epíteto capenga. Mas esta poesia gauche não foi vã. Foi um primeiro campo de prova para as idéias e as palavras de um rebelde que deixaria seu nome inscrito entre as mais fidedignas contribuições ao estudo da cultura popular brasileira; estudo fundado na constituição étnica deste caleidoscópio vivo chamado de cultura brasileira.
A partir da descoberta destes textos por Gilfrancisco, passamos, todos nós que chegamos depois do seu achado, a dever ao abelhudo e afortunado investigador o primeiro impulso ao estudo da gênese da escritura do poeta e etnólogo Edison Carneiro.
4
LEGADO
O valor de Edson Carneiro como profundo conhecedor da nossa cultura popular foi reconhecido por importantes organizações estrangeiras, entre as quais as Sociedades de Folclore do México, Peru e Tucaman, na Argentina. Enquanto, no Brasil, que o nomeou seu membro honorário, pelo Conselho Diretor da Comissão Nacional de Folclore do IBECC (órgão nacional da UNESCO), e pelo Conselho Nacional do Folclore, dos quais participou como membro efetivo. Tal reconhecimento não partiria, no entanto, apenas de instituições oficiais e, desse modo, Edison Carneiro recebeu da Escola de Samba Portela, o título de Grande Benemérito, e o de Sócio Honorário das Escolas de Samba da Mangueira e Acadêmicos do Salgueiro, tendo recebido igual honraria do afoxé Filhos de Gandhi, da Bahia, e do Clube das Pás Douradas, de passistas de frevo do Recife. Após a sua morte, um novo livro de sua autoria seria ainda publicado - Folguedos Tradicionais, um dos mais completos trabalhos existentes sobre a nossa cultura popular. Edison Carneiro morreu em 1973. Hoje é nome de rua, em Pernambués, nome de Escola Pública, de prêmio literário do Estado da Bahia, mas sua memória persiste viva sobretudo na saudade do povo, para o qual o nome de Edison Carneiro é sinônimo de luta pelo futuro.
PEDRO KILKERRY
1
ORIGEM
Pedro Kilkerry nasceu em Salvador (BA), no distrito da Penha a 10 de março de 1885, batizado em 5 de janeiro do ano seguinte, tendo como madrinha D. Maria Inês Teixeira, era descendente de inglês da parte do pai, o engenheiro John Kilkerry, superintendente da Bahia Gás Company Limited e da mestiça alforriada baiana, Salustiana do Sacramento Lima, com quem teve três filhos: João, o mais velho, Pedro, o poeta e Maria da Purificação. Em Salvador, morou com a mãe, avó e irmã na Rua do Cabeça nº 13, onde viveram, por muitos anos, num pequeno quarto, entregue às leituras de Homero, Dante, Shakespeare, Poe, Verlaine, Baudelaire, Rimbaud e outros.
Matriculado no Colégio Sete de Setembro, passou pelo Ginásio da Bahia para estudos preparatórios, época em que trava os primeiros contatos com o grupo da Nova Cruzada, onde estréia em 1906 e colabora por muito tempo. Sobre o poeta, diz Jackson de Figueiredo: “Alto. Magro, feio, feíssimo mesmo, mas de uma feiúra distinta, singular, quase bonita, às vezes, em que como que se distinguia uma luta entre o tipo norte europeu, de que descendia, e o mestiço brasileiro, que ele era”.
Matriculado no Colégio Sete de Setembro, passou pelo Ginásio da Bahia para estudos preparatórios, época em que trava os primeiros contatos com o grupo da Nova Cruzada, onde estréia em 1906 e colabora por muito tempo. Sobre o poeta, diz Jackson de Figueiredo: “Alto. Magro, feio, feíssimo mesmo, mas de uma feiúra distinta, singular, quase bonita, às vezes, em que como que se distinguia uma luta entre o tipo norte europeu, de que descendia, e o mestiço brasileiro, que ele era”.
Foram necessários 100 anos para que o poeta baiano Pedro Kilkerry merecesse o reconhecimento de sua importância literária e tivesse sua obra finalmente resgatada do esquecimento em que se encontrava. A iniciativa partiu de Augusto de Campos que, desde 1962, vinha reclamando a respeito do verdadeiro lugar que o poeta deveria ocupar dentro do nosso quadro literário. Assim, aproveitando-se do centenário do nascimento do poeta, foi relançado o livro ReVisão de Kilkerry.
O trabalho de resgate de sua obra teve início com Jackson de Figueiredo, em 1911, que publica em seu livro Humilhados e Luminosos (1921), um estudo sobre Kilkerry.
Em 1931, Carlos Chiacchio realizou um ensaio sobre a obra e a vida do poeta simbolista. Em 1952, uma reedição de vários textos foi organizada por Andrade Muricy, “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, mas a primeira edição da obra do poeta foi publicada somente em 1970, mesmo assim, de forma incompleta. Somente após um trabalho de anos de pesquisa, sua obra foi relançada, contendo além das poesias, críticas, correspondências e documentos.
2
A POESIA
A poesia de Kilkerry é tão peculiar em si mesmo que só se poderia classificá-la como pertencente ao movimento Simbolista graças ao crítico Andrade Muricy, que o considerou em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Peculiar em termos; é importante notar que, muito além dos clichês que os alunos aprendem em cursos pré-vestibulares, o Simbolismo é apenas uma poesia que se tornou notória, evocativa, onírica e cheia de lugares-comuns, como “latescências de opala” ou “formas alvas, brancas, formas claras...”, ou seja, imagens típicas da poesia de Cruz e Souza. Kilkerry não teve esse tipo de influência do Simbolismo da segunda fase. Seu texto evoca, na maioria das vezes, o espírito do movimento que o precedeu — o Decadentismo — cheio de imagens desconcertantes e mórbidas.
Seus poemas lembram um pouco o despojamento de Cesário Verde, pela linguagem simples e integrada a elementos do cotidiano, porém inseridas nas regras da arte do Parnasianismo, enfeixado na métrica e no ritmo, típicos deste estilo:“É o silêncio, é o cigarro, e a vela acesa/ Olha-me a estante em cada livro que olha/ E a luz nalgum volume sobre a mesa../Mas o sangue da luz em cada folha (“E o Silêncio...”).
Tal secularização do lirismo poético, de certa forma, está mais próxima de Baudelaire do que de Mallarmé, e seus elementos evocam mais Augusto dos Anjos do que Alberto de Oliveira. Em outros exemplos, Kilkerry apresenta imagens tão simples quanto desconexas que lhe colocam distante do discurso simbolista comum: “e que cheiro que sai dos nervos dele/ embora o caio roído, cor de brasa/ E lhe doa talvez aquela pele!” (“O Muro”).
Em outros momentos, sua poesia é colorida, porém cheia de um romantismo falseado, ingênuo mas sem sentimentalismo, cujo sentido é fragmentado e delimitado pelo nonsense dos versos: “E oh! Minha amada, o sentimento é cego/ Vês? /Colaboram na saudade a aranha/ Patas de um gato e as asas de um morcego.. (“E o Silêncio...”).
O seu espírito simbolista está no âmago do conceito de símbolo como correspondência, tal qual dizia Baudelaire, entre o mundo material e espiritual. Além disso, Kilkerry viveu a época daquele movimento. Assim, o poeta baiano teria, conceitualmente, uma ligação estética e conjuntural com o Simbolismo. Porém, ou por desinteresse ou por desconhecimento de alguma edição do autor no mercado, ele não chega a ser lembrado na maioria das cartilhas de literatura brasileira. Ou não chegaria ao status poético (se podemos dizer, assim) de Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza, mais lembrados nos livros e antologias. Como Gregório de Matos, ele tinha fama de maldito. Pária, nada deixou em livro e a sua obra é tão desconexa e esparsa quanto fora a sua vida.
Com todos esses adjetivos, o baiano estava mais para um Qorpo Santo do que para um Olavo Bilac. A má fama de desgarrado acabou despertando a atenção de Augusto de Campos, que também foi um dos responsáveis pela popularização da obra vanguardista de Sousândrade. Em ReVisão de Pedro Kilkerry (1970), Campos fez com o baiano a mesma arqueologia que Mendelsohn havia feito com Bach: descobrir um tesouro escondido. Curioso é pensar que, não sendo integrado como clássico no Simbolismo e sem a aura que os escritores clássicos possuem, o desgarrado e preterido poeta finalmente acabou entrando para o panteão dos vanguardistas.
3
OUTRAS ATIVIDADES
Pedro Kilkerry divide sua atividade intelectual entre a poesia, prosa, tradução e crônica. Como cronista iniciou na revista Os Anais em 1911, mas entre 4 a 15 de março de 1913, passou a colaborar com uma série de crônicas intituladas Quotidianas-Kodaks, para o Jornal Moderno, assinando sob o pseudônimo de Petrus.
Sua crônica constitui uma preciosidade da linguagem, fundindo o que há de mais belo do realismo com a herança saudosista, erudita e sentimental do vernáculo parnasiano. O vigoroso espírito criador, e seu vivo interesse pelo moderno, pela realidade atual, envolveria para sempre sua obra. Portanto, Kilkerry tinha qualquer coisa de simbólico, vivendo na mais tumultuosa e complexa sociedade, mas sua poética viveu num mundo diferente, longe dos homens e de seus problemas. Pelo viço e arrojo revolucionário de sua obra identifica-se seu melhoramento político e social do homem, existindo nele, uma vocação inata da mística e da poética. Sua crônica, revestida de um colorido bem atual, salta-se pelos caminhos diversos e velozes de todos os mortais, formando uma das páginas mais primorosas da época.
Tal força de idéias possuía este homem excepcional, que hoje, ocupa sem nenhuma dúvida uma posição de singular importância na literatura e na arte brasileira. É uma das maiores vozes que já apareceu no início do século no país, e nos deixou uma obra que o transformou numa luminosa estrela, para brilhar eternamente num céu distante, e este período há de ser caracterizado para uma exata compreensão.
Kilkerry mergulha no centro de algo que não se vê, e desde muito jovem caminhou decisivamente por caminhos incestuosos da consciência artística e literária. Graças a sua capacidade ilimitada, dedicou-se a todos os seres e a todos os fatos, dirigindo-os com protesto raivoso.
Kilkerry mergulha no centro de algo que não se vê, e desde muito jovem caminhou decisivamente por caminhos incestuosos da consciência artística e literária. Graças a sua capacidade ilimitada, dedicou-se a todos os seres e a todos os fatos, dirigindo-os com protesto raivoso.
Seu estilo visual transparece no objetivismo descritivo, realista e de intensidade dramática criando um mundo, uma vida, ao descer no mais profundo de si mesmo, indo ao encontro de todos os desejos. Mas, certamente, podemos dizer que somente o conjunto de sua obra nos fala de si mesmo, porque a obra literária continua sendo o fato principal da vida literária. Com uma doutrina criadora própria, com sua execução em nível do imaginário, que desvenda-nos seu universo transfigurado pela arte.
Assim, Kilkerry capitalizou a paisagem e o cosmo, o homem e sua identificação com a natureza, em seus diversos gêneros numa técnica apurada, ou seja, precisamente no imagismo cromático, parnasiano. O poeta é portador de admirável senso crítico, é extravagante nas imagens e ritmos simbolistas, criando com sensibilidade e sofrimento aspectos de renovações poéticas por ele propostas, às vezes lírico outras, verdadeira atmosfera sinistra, de dramaticidade tão intensa que a fluir em símbolos, é atraído repulsivamente pela angústia permanente de desespero.
O poeta é um inventor dos contrastes fortes e coloridos, com uma postura atraente que ajuda à compreensão de seu universo poético, desaparecido em plena efervescência pré-modernista.
Atualmente a crônica vem assumindo entre nós grande importância renovando-se a cada dia, fato que desde o romantismo vem adquirindo um requintado valor estético. E, através de sua dimensão existencial e incansável criatividade, Kilkerry consegue transmitir em suas crônicas, um sabor de renovação duradoura, enriquecendo-se da amplitude de seu mundo ficcional.
O estudo da crônica kilkerriana é tarefa que o critico de hoje deverá tentar, empreitada nunca feita em profundidade. Kilkerry exibe poderosos dons de observação e análise, rebusca uma dimensão cósmica, que cresce e se amplia, exibindo hoje para um mundo moderno. Um passado tão próximo.
Sua crônica embriagada por esfinge redimensiona-se numa atmosfera que se desenrola do seu mundo interior e o faz viajar através de seus conhecimentos mais profundos, rodeados de sonhos e intrigas. Este é um estranho fenômeno que ficou vários anos inexplicado, mas hoje, seu nome evoca os críticos de todo o país, intrigados por suas ações sobrenaturais que num círculo hermeticamente fechado, transforma de modo requintado seus versos em utensílios diários.
Seus significados se fazem múltiplos, ambicioso na máxima claridade dos novos horizontes, numa espécie de jogo transcendental, vividos dentro de um universo fantasmagórico, transmitindo algo de mistério e de magia verbal. Mas sua ascensão era vista por muitos como horror: boêmio, irresponsável, degenerado, louco,vicioso e decadente; era uma literatura excitadamente enfebrecida, um divórcio entre a arte e o restrito público.
4
LEGADO
Portador de tuberculose pulmonar, fora o poeta internado no Hospital Santa Isabel, onde se submeteu a uma cirurgia de traqueotomia, realizada pelo cirurgião Heraclio Menezes, acompanhado pelo interno doutorando Francisco Prata, não resistindo, veio a falecer em 25 de março de 1917, às 12 h 30 min, em decorrência de asfixia pulmonar. Seu enterro foi feito por Gustavo Ramos de Cerqueira Lima, amigo da família, saindo o féretro às 10 horas do dia seguinte de sua residência à Rua do Sodré, nº 21 –(2 de Julho), para o cemitério do Campo Santo, tendo seu corpo descansado na carneira nº1020, quadra nº09.
O Hospital Santa Isabel, pertencente à Santa Casa de Misericórdia vivia de doações, estava destinado a atender à população de renda mais baixa e seus funcionários, era de “indigência”. Este quadro mostra-nos em que situação financeira se encontrava o poeta, apesar de trabalhar como 1º escriturário no Tribunal de Contas do estado e possuir escritório de advocacia. O poeta Pedro Kilkerry, morreu aos 32 anos de idade, solteiro, solitário e esquecido.
O Hospital Santa Isabel, pertencente à Santa Casa de Misericórdia vivia de doações, estava destinado a atender à população de renda mais baixa e seus funcionários, era de “indigência”. Este quadro mostra-nos em que situação financeira se encontrava o poeta, apesar de trabalhar como 1º escriturário no Tribunal de Contas do estado e possuir escritório de advocacia. O poeta Pedro Kilkerry, morreu aos 32 anos de idade, solteiro, solitário e esquecido.
Há poetas que concitam em vida admiração e os fervores do público, outros, porém, só depois de mortos atraem a atenção para a sua obra. E a este grupo pertence Pedro Kilkerry, que não deixou nenhuma obra editada, mas publicou poemas, prosas, traduções e artigos em jornais (Jornal da Manhã, Jornal de Notícias, A Tarde, Gazeta do Povo, Diário da Manhã (SE) e Jornal Moderno), onde publicou a maior parte de sua prosa, além das revistas da época editadas em Salvador, órgãos simbolistas da segunda fase do movimento existentes na Bahia: (A Voz do Povo, Nova Cruzada – 1901/1911 e Os Annaes – 1911/1914, tendo como precursor o poeta Pethion de Villar (1870-1924), seguidos de Durval de Morais (1882-1948), Francisco Mangabeira (1879-1904), Antonio Viana (1884-1952), Artur de Salles (1879-1952), Pereira Caldas (1884-1922), José Leoni (1882-1959) e Carlos Chiacchio (1884-1947), os quais mais se destacaram nas letras e nas artes da Bahia.
O pouco que se conhece sobre a obra e o poeta “maldito”, já algum tempo revelado, foi escrito pelos dois primeiros biógrafos do poeta. Jackson de Figueiredo, amigo e colega de faculdade, que publicou Humilhados e Luminosos, e Carlos Chiacchio, crítico e poeta modernista que viveu na Bahia, e publicou, primeiramente na seção Homens e Obras do jornal A Tarde, quatro artigos intitulados Pedro Kilkerry, em 1931 e na Revista da Academia de Letras da Bahia nºs 2/3 (1931), 4/5 (1932) e 6/7 (1933). Tais trabalhos ficariam na obscuridade se não fosse a descoberta do crítico Andrade Muricy, que publicou parte dos textos e poemas de Kilkerry in Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro em 1952. E mais tarde (1970), sua redescoberta pela vanguarda concretista na pessoa de um dos seus melhores críticos, pelo espantoso levantamento crítico feito por Augusto de Campos, in ReVisão de Kilkerry.
Ao que se sabe, Pedro Kilkerry deixou pouco mais de trinta poesias e pouco mais de vinte textos em prosa, não muito extensos. Nenhum livro. Foram necessários 100 anos para que o poeta Pedro Kilkerry merecesse o reconhecimento de sua importância literária e tivesse sua obra finalmente resgatada do esquecimento em que se encontrava.
MANOEL QUERINO
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ORIGEM
Manoel Raimundo Querino nasceu no 28 de julho de 1851, em Santo Amaro, Ba. A sua infância foi atribulada, como aliás toda a sua vida. A epidemia de cólera de 1855, em Santo Amaro, levou os seus pais. Foi então confiado aos cuidados de um tutor na capital, o professor Manoel Correia Garcia, que o iniciou nas primeiras letras.
Segundo Antonio Vianna, num discurso proferido na ocasião da inclusão de um retrato de Querino na galeria de honra do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia em 1928, Manoel Correia Garcia era “um espírito elucidado, educado na Europa, cultor das letras e amante das coisas do ensino”. Ao invés de criar Querino para ser um serviçal, como era de costume, Correia Garcia “Procurou encaminhar o tutelado nos trabalhos mentais e conseguiu incutir-lhe a paixão do estudo, o amor aos livros que havia de acompanhá-lo até o túmulo”. Mesmo assim, o único futuro que previa para o jovem era nos trabalhos manuais, como operário e artesão, portanto: “Deu-lhe também um meio pratico de viver, mandando-lhe ensinar a arte de pintar”. Entretanto, as aspirações geradas no ambiente de cultura e aplicação aos estudos em que viveu no lar do Bacharel levaram Querino muito além: seguiria o exemplo de seu tutor não somente no magistério, mas também na política e na pesquisa histórica e antropológica.
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DESENVOLVIMENTO
Tendo apenas o curso primário, Manoel Querino, aos 17 anos (1868), alistou-se como recruta, viajando pelos sertões de Pernambuco e Piauí, e aí unindo-se a um contingente que se destinava ao Paraguai. Não fui mandado para o Paraguai por motivos de saúde. Foi para o Rio de Janeiro no mesmo ano, onde ficou empregado no escritório do quartel. Em 1870, foi promovido a cabo de esquadra, e logo depois teve baixa no serviço militar.
Voltando a Bahia, começou a trabalhar nas fainas modestas de pintor e decorador. Sobrava-lhe tempo, porém, para estudar francês e português, no Colégio 25 de Março e no Liceu de Artes e Ofícios, de que foi um dos fundadores. Com as suas inclinações para o desenho, matriculou-se na Escola de Belas Artes, onde se distinguiu entre os alunos. Obteve o diploma de desenhista em 1882. Seguiu depois o curso de arquiteto, com aprovações distintas. Obteve várias medalhas em concursos e exposicões promovidos pela Escola de Belas Artes e o Liceu de Artes e Oficios.
Foi lente de desenho geométrico no Liceu de Artes e Oficios e no Colégio dos orfãos de S. Joaquim. Publicou um manual de desenho em 1903 e outro logo depois.
Interessou-se pela política. Foi republicano, liberal, abolicionista. Com outros do grupo da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, assinou o manifesto republicano de 1870. Fundou os periódicos "A Provincia" e "O Trabalho", onde defendeu os seus ideais republicanos e abolicionistas. Manoel Querino foi um dos mais ativos trabalhadores do grupo. Escreveu para a "Gazeta da Tarde" uma série de artigos sobre a extinção do elemento servil.
Tornou-se um verdadeiro líder da classe, em campanhas memoráveis pelas causas trabalhistas e operárias que o conduziram à Camara Municipal. "Ali - escreve um dos seus biógrafos, Gonçalo de Ataide Pereira, - foi êle contrário às leis de exceções, ás reformas injustas, descontentando aos senhores da situação, mas ao mesmo tempo ganhando as simpatias daqueles que seriam prejudicados por tais reformas, que apenas serviriam para acomodar a amigos e protegidos da situação dominante. Nessa mesma ocasião formou um bloco com outros e por uma indicação fez voltarem aos seus cargos vários funcionários dispensados por uma reforma injusta; e isso custou-lhe a não reeleição, retirando-se satisfeito para a sua obscuridade, desvanecido de que soubera cumprir o seu dever, ficando bem com a sua consciência de funcionário público."
E assim foi tôda a sua vida. No seu modesto cargo de 3°. Oficial da Secretaria da Agricultura, sofreu os mais incriveis vexames. Foi consecutivamente preterido em tôdas as ocasiões em que lhe era de justiça a promoção. Esqueciam-no os poderosos do momento. Secretários e chefes de serviço desinteresavam-se da sorte do Negro, que iria passar um dia à História do seu país. Manoel Querino foi êste tipo de funcionário médio, trabalhador e cumpridor dos seus deveres, mas sem as regálias desta coisa que no Brasil se chama de "pistolão".
Com a passagem do século dedicou muito de seu tempo e energia a estudos históricos, em particular à pesquisa e ao registro das contribuições dos Africanos ao crescimento do Brasil. Esses estudos tinham dois objetivos. Por um lado ele queria mostrar a seus irmãos de cor a contribuição vital que deram ao Brasil; e por outro desejava lembrar aos Brasileiros da raça branca a dívida que tinham com a África e com os Afro Brasileiros. Assim publicou, já em 1906, Os artistas Bahianos, um artigo de 62 páginas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, seguido de 1908 a 1914 por numerosos estudos especializados na mesma revista. Em 1909, publicou uma coletânea de artigos escritos para o «Diário de Notícias» nos dois anos anteriores sob o título «Contribuição para a História das Artes na Bahia». No mesmo ano publicou no Rio Artistas baianos - Indicações Biográficas, (225 páginas), revisada e ampliada em 1911.
Publicou também, entre outros títulos: Bailes pastoris (1914); “A raça africana e os seus costumes na Bahia”, In Anais do V Congresso Brasileiro de Geografia (1916); A Bahia de outrora (1916) e O colono preto como fator da Civilização Brasileira (1918). Também produziu dois livros didáticos: Desenho linear das classes elementares e Elementos de desenho geométrico. Sua obra mais conhecida no Brasil, A arte culinária na Bahia, foi lançada em 1928, cinco anos depois de sua morte. O livro ilustrado Costumes africanos no Brasil (Rio de Janeiro, 1938), organizado por Artur Ramos, reúne vários trabalhos de sua autoria. Segundo Antonio Vianna, “Dedicou-se de corpo e d’alma aos estudos tradicionalistas, revivendo com uma exatidão inexcedível e irrefutável, tipos e hábitos, coisas e idéias que estavam condenadas a perpetuo olvido”. De acordo com o pesquisador norte-americano David Brookshaw, Manoel Querino tentou “aparar o golpe do proeminente etnólogo Nina Rodrigues, defendendo os negros e exaltando suas qualidades[...]. Querino, poder-se-ia acrescentar, estava particularmente interessado na reabilitação do mestiço urbano alfabetizado; de aspirações pequeno-burguesas, e seu papel pode ser comparado ao de Booker Washington nos Estados Unidos, de quem era fervoroso admirador”. Certamente uma das maiores contribuições de Querino à historiografia brasileira foi sua insistência para que a História Nacional levasse em consideração suas raízes africanas e a presença e influência dos africanos. O Brasil, ele enfatizava, era o resultado da fusão entre portugueses, índios e africanos, mas a contribuição dos africanos estava sendo menosprezada. Ele ratificou estas contribuições em seu livreto “O colono preto como fator da Civilização Brasileira”. Por exemplo, Querino determinou o afro-brasileiro como personagem principal na defesa do Brasil e na manutenção da integridade nacional.
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CONTRIBUIÇÃO
Ao voltar sua atenção para a História, Querino esperava re-equilibrar a ênfase tradicional da experiência européia no Brasil. Nenhum afro-brasileiro havia até então dado sua perspectiva da História do Brasil. Querino surgiu como um dos primeiros brasileiros e possivelmente o primeiro afro-descendente a detalhar, analisar e fazer justiça às contribuições africanas ao seu País. Apresentou suas conclusões em meio a um clima de opinião que era na melhor das hipóteses indiferente, e na pior racista e até genocida. Desmentiu o racismo pseudocientífico de Gobineau e Spencer, disseminado no Brasil pelo médico-legista Nina Rodrigues, entre outros, e utilizou o darwinismo social para seus próprios fins: acreditando que a raça africana fosse “não evoluída” por causa da escravidão e da conseqüente falta de oportunidades, ele viu no seu próprio exemplo e o de outros eminentes baianos negros cujas vidas registrou, que, quando o afrodescendente é respeitado e devidamente instruído, sua evolução social e econômica é garantida.
Em “A raça africana”, dá o exemplo dos religiosos negros observados por Padre Vieira na Ilha de Cabo Verde no século XVII: “Há aqui clérigos e cônegos tão negros como o azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados que fazem invejas aos que lá vemos nas nossas catedrais”. E Querino arremata o argumento assim: “Do exposto devemos concluir que, somente a falta de instrução destruiu o valor do africano”.
Seria difícil exagerar a importância da contribuição de Manoel Querino à valorização da imagem do negro no Brasil. Na sua época, era uma voz solitária. Um negro que conquistou um lugar no meio da elite branca, tentou utilizar sua posição para divulgar uma mensagem que nenhum de seus contemporâneos – negro ou branco – podia proferir.
Nas palavras do historiador norte-americano E. Bradford Burns, “Seus estudos tinham dois objetivos. Por um lado, Querino queria mostrar a seus irmãos de cor a contribuição fundamental que deram ao Brasil; e por outro ele desejava lembrar aos brasileiros de origem européia da dívida que tinham, e têm, com a África e com os afro-brasileiros”. Além de escrever sobre os afro-brasileiros, Querino também ajudava a defendê-los. Segundo Burns, chamou a atenção dos oficiais municipais às perseguições existentes aos praticantes das religiões afro-baianas. Uma vez que a sociedade rotulava essas religiões como “bárbaras e pagãs”, a polícia freqüentemente aparecia nos terreiros durante as cerimônias, destruindo e confiscando propriedades e ferindo os participantes. Em “A raça africana”, Querino declara: Incontestavelmente, o feiticismo africano exerceu notória influência em nossos costumes; e nos daremos por bem pago se o reduzido material que reunimos puder contribuir para o estudo da psicose nacional no indivíduo e na sociedade. E, aproveitando o ensejo, deixamos aqui consignado o nosso protesto contra o modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano, acoimando-o constantemente de boçal e rude, como qualidade congênita e não simples condição circunstancial, comum, aliás, a todas as raças não evoluídas.
Como Artur Ramos observou: “Nota-se como, já no seu tempo, Manoel Querino se insurgira contra o preconceito de inferioridade antropológica do Negro, atribuindo o seu atraso a contingências socio-culturais, e não a inferioridade de raça”.
Foi reformado administrativamente em 1916. Amargurado e descrente, refugiou-se no Matatú Grande, com sua família, seus amigos, ou nas reuniões do Instituto Geográfico e Histórico. No mesmo ano participou do 5.° Congresso Brasileiro de Geografia na Bahia, cujas anais contém A raça africana e os seus costumes, e publicou A Bahia de outrora--Vultos e Fatos Populares.
Querino, na época, trouxe à História do Brasil a perspectiva do Afro-Brasileiro. Morando na comunidade de descendência Africana, ele conhecia com intimidade os hábitos, aspirações e frustrações dos Afro-Brasileiros. Falando de suas fontes de pesquisa, Querino revelou que muitas de suas informações vinham diretamente de Afro-Brasileiros idosos que conversavam com ele sem inibição, pois o viam como um amigo.
Historiadores certamente devem muito a Querino. Ele preservou um considerável montante de informações sobre as artes, artistas e artesões da Bahia. Ninguém pode efetuar uma pesquisa sobre esses assuntos sem consultar seus trabalhos. Além do que ele é uma fonte excelente para o estudo de História Social. Em seu As Artes na Bahia , por exemplo, estão incluídos trechos de biografias de trabalhadores, artesões e mecânicos, esses que são qualificados como "pessoas comuns". Estas biografias originais fornecem uma perspectiva inestimável das vidas dos humildes, que foram os que mais contribuíram para o crescimento do Brasil. Ele também oferece em seus ensaios informações abundantes sobre costumes, cultura e religião. Uma das maiores contribuições de Querino à Historiografia Brasileira foi sua insistência para que a História Nacional levasse em consideração seu componente Africano, cuja contribuição estava sendo minimizada.
Manoel Querino casou-se duas vezes e teve quatro filhos. Faleceu a 14 de fevereiro de 1923, em sua casa em Matatu Grande, distrito de Brotas, deixando Laura Querino, sua esposa em segundas núpcias, e dois filhos vivos: o músico Paulo Querino e Maria Anatildes Querino. Seus restos mortais encontram-se enterrados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Salvador. Apesar de seu prestígio e influência, morreu pobre. Hoje, a Sociedade Protetora dos Desvalidos mantêm o Centro Cultural Manoel Raimundo Querino, criado em sua homenagem.
De acordo com Jorge Amado, o protagonista de seu romance Tenda dos Milagres, lançado em 1969, “é a soma de muita gente misturada: o escritor Manoel Querino, o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, Miguel Santana Obá Aré, o poeta Artur Sales, o compositor Dorival Caymmi e o alufá Licutã (da revolta dos Malês) — e eu próprio, é claro”. A relação da obra fictícia do personagem Pedro Archanjo — A Vida Popular na Bahia, Influências Africanas nos Costumes da Bahia, Apontamentos sobre a Mestiçagem nas Famílias Baianas e a Culinária Baiana: Origens e Preceitos — não deixa dúvidas quanto à sua inspiração. E tanto Querino como seu alter ego amadiano tiveram algumas de suas obras colecionadas e comentadas pelo eminente estudioso brasileiro Artur Ramos. Nas palavras de Jorge Amado: os trabalhos produzidos por Pedro Archanjo eram “livros hoje considerados fundamentais para o estudo do folclore, o conhecimento da vida brasileira nos fins do século passado e nos começos do atual, e sobretudo para a compreensão do problema das raças no Brasil”.
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ORIGEM
Juarez Marialva Tito Martins Paraíso, conhecido como Juarez Paraíso, nasceu em Arapiranga, na Bahia, no ano de 1934. Pintor, gravador, desenhista, professor e crítico, Juarez Paraíso ingressou na Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, em 1950, onde seis anos mais tarde, passou a lecionar didática especial de desenho e desenho de modelo vivo. Atuou como crítico de artes plásticas, no jornal Diário de Notícias e, entre 1966 e 1968, projetou e realizou as duas bienais da Bahia. A partir de 1975, dedicou-se a experiências com fotografia, desenho, tapeçaria e murais. Em 1984, executou o painel da Biblioteca Central da UFBA e, na década de 90, ilustrou os poemas: Bandido Negro e Saudações a Palmares, no livro Castro Alves: Poesias.
Pertencente à segunda geração modernista da Bahia, esse artista teve uma importância fundamental na divulgação da linguagem abstrata, através da pesquisa, do ensino, de exposições e da criação de arte, destacando-se perante os demais artistas da sua geração.
Em toda a sua trajetória artística, Juarez Paraíso portou-se como um artista que sempre valorizou, incondicionalmente, a liberdade de expressão. Essa liberdade de expressão e a relação de verdade que transparece em sua produção vão possibilitar a materialização de elementos que comuniquem sentidos, pois, ao buscar refletir-se inteiro na arte, ali registra suas impressões do mundo, suas ideologias e suas preocupações existenciais, as quais assumem formas variadas de manifestações, da representação bidimensional aos grandes murais públicos, esculturas e ambientes.
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A OBRA
Ainda que o dinamismo seja, a partir do início dos anos sessenta, uma característica das abstrações de Juarez Paraíso, sua produção inicial experimentou um geometrismo de vida breve. Refere-se, aqui, às obras datadas de 1959. Essas peças traduzem uma interpretação de espaço de formulação geométrica e constituem-se nas primeiras experimentações do artista no campo da abstração geométrica.
Outras obras calcadas no geometrismo foram ainda desenvolvidas no início dos anos sessenta, dessa vez em técnica mista e com aplicação de cores. As zonas de cor apresentam-se em oposições entre chapados e áreas texturadas com a utilização do lápis cera, o que confere gradações diferenciadas de tonalidades.
O predomínio de cores frias (azul, lilás, roxo, verde) e relações entre as superfícies esféricas referendam a intencionalidade de representação de astros celestiais, visto o artista intitulá-las Paisagens cósmicas. É uma associação que realmente se pode estabelecer, ainda que, do ponto de vista formal, o artista promova um tratamento abstrato de depuração dos quais os únicos vínculos com os aspectos visuais dos corpos celestes restringem-se à circularidade dos “astros” e ao predomínio das cores frias como alusão à imensidão do espaço.
Multiplicidade e diversidade são justamente características da produção plástica de Juarez Paraíso. Assim, ele vai trabalhar com todos os recursos indistintamente, tirando proveito de todo o potencial sensível fornecido pela técnica e mesmo inventando-as, quando necessário, como solução de algum problema que tenha se apresentado. O que importa é que a matéria possa ser manipulada de forma a atender à fantasia criadora do artista e não se tornar um empecilho para a materialização da obra de arte.
Seu domínio técnico abrange desenho (grafite, lápis de cor, nanquim, bico-depena, aerógrafo, pastel seco, pastel a óleo, carvão, sanguínea, hidrocor), tendo aplicado o bico-de-pena sobre eucatex, algo que não tinha sido feito anteriormente no desenho; pintura (aquarela, ecoline, guache, têmpera, óleo, acrílica, látex ou PVA); escultura (modelagem em barro, gesso, bronze, fibra de vidro, entalhe em madeira) e uma mistura de cimento com barro, inventada pelo artista (naturalmente com a contribuição da experiência dos mestres de obras com os quais trabalhou, contratados para os inúmeros murais e esculturas que o artista realizou no Estado) e utilizada para possibilitar a curvatura de grandes massas de formas sinuosas em esculturas tais como Invertebrado, de grandes proporções, com estrutura de concreto, relevos de massa de cimento e barro, recoberta de pastilhas vidrotil coloridas, realizada em 1979 e exposta ao ar livre no Parque de Pituaçu, em Salvador.
A maestria técnica abrange também a gravura (xilografia, litografia, serigrafia, água-forte, água-tinta, maneira negra e experiência com off-set); de igual forma, inovou ao utilizar pano como suporte de xilogravuras e, juntamente com o gravador baiano Edizio Coelho, criou um sistema de encaixes na matriz de madeira que permitia, a um só tempo (de uma única vez), a impressão de várias cores ao mesmo tempo, algo que só poderia ser obtido com impressões separadas para cada uma das cores desejadas, após a secagem da aplicação da tinta anterior. Um original colorido com base em três cores, por exemplo, sofria três impressões. Com o sistema criado pelos dois artistas, a impressão se dava de uma só vez.
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TRAJETÓRIA
Nascido quatro anos após a eclosão da Revolução de 1930 e poucos anos antes do início da Segunda Guerra Mundial, Juarez Paraíso teve sua trajetória de vida até o período de estudos na Escola de Belas Artes (EBA) marcada por grandes dificuldades econômicas. Sua determinação na criação de uma base sólida, fundamentada no estudo de Arte, favoreceu-lhe a obtenção de conquistas sociais e artísticas, bem como lhe proveu instrumentalmente de condições para desenvolver sua carreira de artista. Antes mesmo da conclusão de seu primeiro curso (Pintura), ele já ensinava na EBA (como Auxiliar de professor regente, em 1957) e já angariava premiações em certames de artes plásticas. Seu segundo curso superior foi Gravura, seguindo-se o de Escultura.
Seu contato com o modernismo se deu com a leitura, as exposições dos Salões Baianos de Belas Artes (a partir de 1949), os quais reuniam separadamente as produções acadêmicas (na Divisão Geral) e modernistas (na Divisão de Arte Moderna). Adicionalmente, ele manteve contatos, como aluno, com Maria Célia Amado e com a agitação promovida pelas exposições dos artistas da primeira geração modernista, incluindo-se o convívio com Mario Cravo Júnior, nos anos 1950,na EBA.
Como conseqüência das novas possibilidades apresentadas pelo modernismo, Juarez comungava com outros colegas professores, assim como com estudantes da EBA, um sentimento generalizado de necessidade de renovação do ensino acadêmico, pela assimilação das novas soluções plásticas modernistas. Essas propostas abrangiam também as possibilidades oferecidas pela arte abstrata, da qual Maria Célia Amado e Mario Cravo Júnior (dois representantes da primeira geração modernista) surgiam como pioneiros na Bahia. A segunda geração modernista baiana, que passou a atuar nos anos 1960, vira na abstração uma nova organização espacial que permitia a atualização do vocabulário plástico e o posicionamento crítico frente aos conteúdos regionalistas que margeavam as obras dos artistas da primeira geração. Esse processo foi denominado de Internacionalização da Arte Moderna e Juarez Paraíso participava ativamente com trabalhos, nos quais explorava exaustivamente o uso da linha sinuosa.
Esta opção sintetizava plasticamente as influências das curvaturas das ruas, becos e arquitetura colonial do Centro Histórico de Salvador e da graciosidade e voluptuosidade do corpo feminino, ao mesmo tempo em que expressava os conceitos modernistas de força espacial e qualidades dinâmicas e de exploração do espaço bidimensional como campo de forças (o equivalente a composição).
Essa produção era classificada por “informal”, termo que no Brasil designava as tendências abstratas não geométricas. A arte informal evocava o indefinido, mas com sentido e emoções universais, pois reforçava a individualidade e valorizava o conceito do homem como ser único. O termo surgiu para se criar uma distinção do “formal” (ou arte de tendência geométrica), mas ambos guardam uma relação estreita entre si e se configuram como características intrínsecas da forma e do espaço. Afinal, o informal se torna visível ao olho humano por seus princípios formais e ambos se espelham na criação artística de Juarez Paraíso, de maneira complementar, inclusive no mesmo trabalho, invalidando, portanto, a dicotomia formal/informal.
Espelhando o que ocorria na Europa, a oposição entre formal e informal foi alimentada pelas vanguardas brasileiras e essa discussão estendeu-se ao início da década de 1960, período no qual um grupo de artistas baianos da segunda geração modernista exercitava suas criações abstratas e buscava legitimar uma renovação plástica da cidade, tendo a abstração como linguagem de expressão. Dentre os que trabalharam com abstração e compunham aquela geração (além de Juarez Paraíso), encontravam-se: Betty King, Adam Firnekaes, Jenner Augusto, Leonardo Alencar, Sonia Castro, Jamison Pedra, Gley Mello, Calasans Neto, Riolan Coutinho, Sante Scaldaferri e Luiz Gonzaga.
A comparação entre a produção desses artistas e a de Juarez Paraíso permite constatar que o nível de inventividade e qualidade estética da produção deste último equiparava-se igualitariamente às obras de Betty King e Adam Firnekaes, ainda que os recursos técnicos utilizados pelos três, assim como os enfoques estilísticos, fossem distintos. Percebe-se, todavia, que os resultados em nível de forma, composição, uso de cores e demais recursos plásticos obtidos pelos três denotam uma maturidade de linguagem que busca expressar visualmente as inquietações, sensações e reflexões dos artistas frente às problemáticas levantadas pela abstração.
Em relação aos demais, observou-se a relevância de Juarez Paraíso, não somente pela originalidade de sua pesquisa abstracionista, desenvolvida por meio do desenho, da gravura, da pintura a guache e da técnica mista, como também pelas novas soluções técnicas desenvolvidas e, principalmente, pela duração temporal de sua produção (superior a uma década), o que favoreceu o aprofundamento de questões pertinentes à linguagem abstracionista e possibilitou o reconhecimento institucional dessa mesma produção pelo sistema artístico.
Essa longevidade produtiva aliada à qualidade estética, bem como a maestria em diversas técnicas e as soluções plásticas criadas por Juarez Paraíso — bastante diferenciadas das utilizadas pelos outros artistas —, destacam sua produção entre os demais da segunda geração modernista baiana. Décadas depois, Juarez Paraíso continuava desenvolvendo a abstração concomitantemente com sua produção figurativa.
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LEGADO
Adicional a sua criação plástica, observou-se que Juarez Paraíso exerceu lideranças significativas que resultaram em benefícios e fortalecimento do meio cultural baiano, tais como as atuações como secretário geral das duas Bienais da Bahia, em 1966 e 1968, a direção artística da Galeria Convívio, de 1965 a 1967, e o exercício crítico sobre arte em artigos publicados nos jornais A Tarde, Diário de Notícias e Tribuna da Bahia, nos anos sessenta e setenta, sempre valorizando os talentos locais e contribuindo para informar a opinião pública sobre as características da produção artística modernista. O fortalecimento do campo cultural da cidade interessava-lhe sobremaneira, visto que ele também se beneficiaria, já que era elemento integrante e ativo daquele sistema. Sua contribuição foi igualmente relevante no âmbito acadêmico da Escola de Belas Artes, atividade que ainda desenvolve na atualidade.
Por todos esses motivos, a produção de Juarez Paraíso é uma importante contribuição à arte brasileira e ao desenvolvimento da expressão plástica abstrata e informal no Brasil.
MESTRE DIDI
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ORIGEM
Artista-plástico, escritor, e alto sacerdote do culto aos ancestrais-egun, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, popularmente conhecido como Mestre Didi, é um dos mais significativos representantes da cultura afro-brasileira.
Descendente da tradicional família Asipa, originária de Oyo e Ketu, importantes cidades do império Iorubá, Mestre Didi é o mais antigo descendente no Brasil do reino do Ketu, hoje ocupado pela Nigéria e pelo Benin. Nascido em Salvador, em 2 de dezembro de 1917, aos oito anos, Mestre Didi foi iniciado no culto aos ancestrais, dedicando toda sua vida a preservar a tradição legada pelos seus antepassados. Em função de juramento e por sua condição de nobreza, Mestre Didi não fala em público, fora do recinto religioso.
Sua mãe, Maria Bibiana do Espírito Santo, mais conhecida como Mãe Senhora, foi uma grande dama, uma reconhecida Iyalorixa, condutora durante 30 anos de uma das mais sérias e tradicionais comunidades da Bahia, o Ilê Axé Opó Afonjá. Seu pai, mulato elegante, era alfaiate, naquela época considerada uma profissão de categoria. As maiores influências que o iniciaram na sua longa dedicação à tradição litúrgica vieram da grande Iyalorixa, Eugenia Ana dos Santos, Mãe Aninha, que deu esplendor à vida africano-brasileira na Bahia até os 40 anos.
Mestre Didi foi iniciado no culto aos ancestrais Egunguns, no Ilê Olukotun, Tuntun, na Ilha de Itaparica. Em 1975, tornou-se Alapini, o Sacerdote Supremo do culto aos Egunguns – o mais alto grau na hierarquia sacerdotal. Em 1983, Mestre Didi recebeu o título máximo de Obá Mobá Oni Xangô, do Rei do Ketu, na Republica de Benin.
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ESCULTURAS
A sabedoria do baiano Mestre Didi transmitida via uma extensa produção de esculturas – lhe rendeu reconhecimento internacional como um artista de vanguarda. Suas obras fazem parte do acervo do Museu Picasso, em Paris, do MAM de Salvador e do Rio de Janeiro, entre vários outros museus estrangeiros.
Começou fazendo entalhes em madeira, depois vieram os “exus” esculpidos em cimento e barro.
Segundo o artista plástico e também curador Emanoel Araújo: A magia de suas esculturas está na forma como o Mestre Didi transpõe a energia de interpretação mitológica e inventividade de formas, ritmos e composições, se articulando num espaço negativo e positivo, num desafio de equilíbrio totêmico que se abre no espaço, como árvores plantadas numa base de seção côncava e circular. Grafismos compostos de múltiplas linhas encastoadas por pequenos anéis de couro, cores vibrantes que amarram as nervuras naturais de palmeiras, são como ritmos alternados que andam no corpo da escultura.
O Mestre Didi também se vale de anéis de miçangas ou contas de louça e de búzios para reforçar a trama dessa obra. Alguns desses mastros verticais, denominados os Sasaras, os Ibiris, os Ofas, os Opas, são na iconografia do Mestre Didi exemplos da sua criatividade, como um jogo lúdico a construir uma obra com fortes vínculos com a arte sacra-baiana. O resultado é a criação de uma nova estética que une o presente ao passado, o antigo ao contemporâneo, a abstração à figuração. São formas compostas ora como totens, ora como entrelaçadas curvas – simbolizando a serpente Dan – ora os grandes pássaros da noite, o Grande Pássaro Mãe – Eleye N’La, como o pelicano que tira do seu próprio corpo o alimento para seus filhos.
Tem ainda os Ibiris e Xaxarás, os bastões de Omolú e de Iansã, ou os leques de Oxum, o Opaxorô de Oxalá e a grande árvore coroada com a pomba de Ossãim.
Mestre Didi executa objetos rituais desde a infância e adolescência. Desde pequeno aprendeu também com os mais antigos a compreender e manipular objetos e formas, objetos e emblemas que presentificam as entidades sagradas. De antiga linhagem Ketu, foi iniciado no culto do orixá Obálúiayê que juntamente com o orixá Nanã e Oxumaré constituem o Panteão da Terra, inspiração maior de sua obra, marcada por uma profunda consciência da relação do homem com a Terra.
Ele veicula intencionalmente, para além de sua própria vida, a energia mítica do sacerdote-artista. As obras de Mestre Didi revestem-se de total liberdade face às expressões estéticas da civilização ocidental. Essa liberdade lhe permite desenvolver, a partir de emblemas rituais, um amplo universo mítico de criações que, sem ser propriamente de inserção ritual, continua carregado desse mundo espiritual e mítico, recriando a cosmogonia e a teofania de tempos pré-líticos.
Mestre Didi formaliza suas idéias com sensibilidade própria e conduz com expressividade o caráter emocional do complexo africano-brasileiro permeando-o com os aspectos singulares de sua vivência individual. Deoscóredes Maximiliano dos Santos - Mestre Didi - inscrevendo-se na vertente mitológica das artes, projeta uma energia poética de caráter universal. Precisamente pela total independência e originalidade, sua obra se insere numa arte de vanguarda
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PUBLICAÇÕES
Aos 29 anos, Mestre Didi publicou o seu primeiro livro, Yorubá Tal Qual se Fala. Outros 20 livros se seguiram, entre histórias de terreiros e contos da tradição negra da Bahia.
Mas Mestre Didi sempre julgou a palavra escrita insuficiente na transmissão de conhecimentos. “No começo dos anos 80 tivemos uma comunidade infantil onde Didi escrevia e encenava peças de teatro, ensinava canto, dança, maquiagem. Não existe dicotomia entre as artes”, diz a antropóloga Juana Elbein dos Santos, esposa do Mestre. “Todos os contos afro-brasileiros são cânticos. Foram feitos para serem ouvidos, cantados e dançados”, completa ela. É por isto que Mestre Didi também é conhecido como um artista integral, “um renascentista da cultura nagô”.
Mestre Didi buscou sempre - através de livros, ensaios, filmes - preservar e divulgar a sua herdada cultura. Afirmou-se como líder notável de sua comunidade e porta-voz autorizado de sua tradição. Mestre Didi transmite por escrito em seus livros de contos e dramatizações - peças teatrais e autos coreográficos - aqueles ensinamentos que circulavam oralmente na sua comunidade e que aprendeu desde sua infância. É o espírito de continuidade que fala por seu intermédio. Ele transforma em uma singular literatura, recriando formas e conteúdos narrativos, o acervo oral da tradição Nagô, sem perder a essência de suas ricas e complexas elaborações simbólicas.
Em 1961 publica, com prefácio de Jorge Amado e ilustrações de Caribé, Contos Negros da Bahia. Um ano depois com notas de Roger Bastide publica Axé Opó Afonjá, e em 1963, Contos de Nagô. Em 1966, o livro-objeto Porque Oxalá usa Ekodidé, com ilustrações de Lênio Braga. Em 1971 publica Eshu Bara Laroyé: a comparative study, Institute of African Studies, Universidade de Ibadan, Nigéria. Em 1981, Contos de Mestre Didi, pela editora Codecri, Rio de Janeiro. Em 1987, Xangô, el guerrero conquistador y otros cuentos da Bahia, Buenos Aires, Argentina. Além de diversas publicações em parceria com a sua esposa, a antropóloga Juana Elbein dos Santos.
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LEGADO
Mas a atividade de Mestre Didi não se restringe ao seu ateliê, à publicação de livros e às suas atividades sacerdotais ou comunitárias. Ela se expande na fundação de instituições de reflexão e de divulgação, significativas do patrimônio cultural africano-brasileiro. Participa de seminários nacionais e internacionais e congressos. Funda e participa ativamente de várias instituições dentre as quais, a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil - SECNEB, o Instituto Nacional da Tradição e Cultura Africano-Brasileira - INTECAB, o Congresso Mundial da Tradição dos Orixá - COMTOC, realizando também várias viagens Internacionais a África Ocidental, Europa e EUA.
Segundo a antropóloga Juana, “Mestre Didi é um sacerdote-artista. Exprime, através da criação estética, uma arraigada intimidade com seu universo existencial, onde ancestralidade e visão de mundo africanos se fundem com sua experiência de vida baiana”.
A força da continuidade africana no Brasil está presente na trajetória de Mestre Didi, nas suas atividades seja na religião, na arte, seja na ciência e filosofia ou nas múltiplas atuações institucionais que impulsionam novas formas de percepção da pluralidade da cultura brasileira contemporânea.
RUBEM VALENTIM
Definindo rumos
Rubem Valentim nasceu em Salvador (BA) no ano de 1922 e faleceu em São Paulo em 1991. Autodidata, começou a pintar em meados da década de 1940 quando, ao lado de outros então jovens artistas, contribuiu para o movimento de renovação do panorama cultural baiano.
Formado em Odontologia, exerceu por alguns anos a profissão, da qual foi-se afastando gradativamente por volta de 1948 para se consagrar cada vez mais à pintura. Nesse mesmo ano ingressou no Curso de Jornalismo da Universidade da Bahia, que concluiu em 1953.
A primeira vez
Do Rio à Europa
Na capital italiana permaneceria três anos, realizando em 1965 uma individual na Casa do Brasil, além de participar de algumas coletivas. Em setembro de 1966, após tomar parte no Festival Mundial de Artes Negras de Dacar (Senegal), retornou ao Brasil e se fixou em Brasília, atendendo a convite para dirigir o Ateliê Livre do Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília, função que desempenharia até 1968. No mesmo ano do regresso participou com sala especial da I Bienal Nacional de Artes Plásticas, em Salvador.
As exposições
As origens africanas
E o fez sem nenhuma concessão ao folclórico, ao turístico ou ao pitoresco, antes interpretando a simbologia ritualística de seus antepassados em termos de visualidade pura.
Concretismo e construtivismo
A arte semiótica
Sua pintura transformou-se, assim, em totem, altar, estandarte, escultura pintada, objeto emblemático eivado de uma grave e recôndita religiosidade.Dessacralizador de fetiches e de objetos rituais, aos quais imprime os contornos de uma semântica peculiar, Rubem Valentim tem sido considerado por alguns estudiosos, entre eles José Guilherme Merquior, o pioneiro de uma arte semiótica brasileira. Em 1994 sua obra foi objeto de uma bem cuidada retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil, do Rio de Janeiro.
EMANOEL ARAÚJO
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ORIGEM
Existem artistas que, além de criar e realizar obras autorais também são vetores do fenômeno cultural, estimuladores de outros artistas, divulgadores eficazes da idéia da arte entre os indivíduos e comunidades, contribuindo para uma alteração da percepção do universo artístico, que se torna assim ampliado por sua ação. São pouquíssimos os artistas que tem essa disposição, que possuem esse carisma e esse poder multiplicador dos fatos artísticos. Emanoel Araújo é um desses artistas.
Nascido em 15 de novembro de 1940, Emanoel Araújo é escultor, desenhista, gravador, cenógrafo, pintor, curador e museólogo. Filho de pai cafuzo e mãe mestiça, Emanoel nasceu em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, cujo cenário o inspirou para a execução de muitas de suas produções.
Descendente da terceira geração de grandes ourives, ainda novo foi aprendiz de marceneiro do mestre Eufrásio Vargas; aos treze anos trabalhou em linotipia e composição gráfica na Imprensa Oficial do Estado – experiência de grande importância para o domínio da técnica e para o desenvolvimento da expressão.
Mudou para Salvador com o intuito de cursar Arquitetura, mas suas constantes visitas a exposições e museus fez com seus planos tomassem outro rumo. Foi quando se matriculou na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, onde teve aulas de gravura com o mestre Henrique Oswald, artista que por admiração queria que Emanoel fosse seu substituto no ensino universitário. No mesmo período, produz ilustrações, cartazes e cenários para teatro. Nas xilogravuras que então produz, notam-se algumas que já possuem relevos, dobras ou rugas. Essas obras exploram temas locais e representações femininas que aludem à fecundidade.
A partir de 1971, realiza obras abstratas, compostas por formas geométricas conjugadas. O artista gradualmente aproxima-se das vertentes construtivas, reduzindo as formas a estruturas primárias. Desenvolve trabalhos que contêm segmentos ondulados de outras gravuras, colados sobre o plano de uma gravura maior, de maneira a produzir cortes, interferências e justaposições no plano. Essas peças já apontam seu interesse pelo tridimensional.
Interessado na reestruturação do universo da arte africana, o artista enfatiza em suas gravuras, relevos e esculturas as formas geométricas aliadas a contrastes e cores fortes.
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TRAJETÓRIA
Foi diretor do Museu de Arte da Bahia de 1981 a 1983. Enquanto morava em São Paulo foi diretor da Pinacoteca do Estado (1992 a 2002), recebeu menção honrosa especial da Associação Brasileira de Críticos de Arte (1999), foi curador e diretor do Museu Afro-Brasil, do qual possuía obras de sua coleção (2004) e assumiu o cargo de Secretário Municipal de Cultura, do qual renunciou poucos meses depois (2005). Em Brasília, foi membro convidado da Comissão dos Museus (1995) e do Conselho Federal de Política Cultural (1996), instituídos pelo Ministério da Cultura. No período de um ano – a convite do City College University of New York – lecionou artes gráficas, desenho, escultura e gravura, onde desenvolveu diversos modos para obter peças gravadas, utilizando superfícies de plástico laminado e fórmica. Realizou várias exposições individuais e coletivas por todo o Brasil, Europa, Estados Unidos e Japão.
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RECONHECIMENTO
Como não podia deixar de ser, Emanoel Araújo recebeu diversos prêmios em todas as técnicas trabalhadas. Para Emanoel, suas raízes (descendente de criativos ourives), sua cidade natal (região tipicamente baiana de infindáveis belezas naturais) e suas idéias de representar o mundo à sua volta (seja sobre o passado ou sobre o presente como a escravidão, a perda da terra para os colonizadores, a presença africana na cultura brasileira e outros tantos fatores) foram de excepcional importância para a execução de seus trabalhos. A sua constante aquisição de um vasto conhecimento cultural fez com que suas obras obtivessem o calor e a sensibilidade contidos na população brasileira que nem todos os estrangeiros ou mesmo os próprios brasileiros estão acostumados a identificar.
Araújo vem sendo considerado um extraordinário escultor. Suas obras tridimensionais se destacam pelas grandes dimensões, pelos relevos e pela formas integrantes nas edificações urbanas. Seu estilo – mesmo sendo único – dialoga com movimentos artísticos de toda a história, mas sempre com ênfase nos detalhes que descrevem e valorizam as características africanas.
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A OBRA
O desenvolvimento de seu estilo e da formação de seu material cultural, passa pelos seguintes estágios:
- O mundo da Bahia, descrevendo a localidade baiana tipicamente tropical, flora e fauna.
- A história sócio-cultural da região: os indígenas e a imposição da escravidão pelos portugueses com a chegada dos africanos, que resulta virtualmente, num período africano.
- A sua ancestralidade, ameríndia e iorubá, seu pai, seu avô e seu bisavô, eram ourives, artesãos de grande desenvolvimento criativo. Mantivemos os adjetivos cafuzo e mestiça, respeitando a fala do artista que ressaltou a presença africana e indígena na constituição de sua família. Estes três fatores são evidentes e em sua obra estão acentuadas pelo seu interesse num passado multiétnico e simultâneo que vai do Atlântico à Europa e da América à África.
Em 1998, quando ministrava um curso de desenho e gravura no City College da Universidade de Nova Iorque, desenvolveu outra técnica para obter peças gravadas, usando superfícies de plástico laminado e fórmica. Trabalha o papel imprimindo-o em, no mínimo, três etapas:
a) os fragmentos criam o que ele chama - enviroment;
b) estrutura a imagem criando linhas de força e tensão;
c) acabamento: após a forma estar definida e as tensões resolvidas, faz a opção cromática.
Sua obra contém duas correntes: a posição histórica de sua arte com a moldura ideológica do final do século XX e a importância da África e dos africanismos brasileiros na sua estética. Duas correntes que se unificam na relação do estilo neo-africano de alguns de seus contemporâneos no Brasil, no Caribe e na América do Norte.
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LEGADO
Na carreira do grande escultor juntou-se o idealismo e a eficiência do incentivador que semeia e multiplica os eventos da arte, que ama a atividade artística, realiza o esforço generoso de sua divulgação (por mais árdua que ela seja), e sendo preciso nesse saber fazer, desenrola a história e chama a atenção para uma fonte de conhecimentos, descobertas e satisfações.
Ao longo de muitos anos a frente de museus e casas de cultura (em especial, a Pinacoteca do Estado, de São Paulo), Emanoel Araújo introduziu uma dinâmica, consistente, que resultou no acesso do grande público, de maneira muito organizada, a várias exposições de nível internacional, além da melhoria considerável dos equipamentos e dos espaços, para se ver arte confortavelmente.
Ao longo de muitos anos a frente de museus e casas de cultura (em especial, a Pinacoteca do Estado, de São Paulo), Emanoel Araújo introduziu uma dinâmica, consistente, que resultou no acesso do grande público, de maneira muito organizada, a várias exposições de nível internacional, além da melhoria considerável dos equipamentos e dos espaços, para se ver arte confortavelmente.
Por amor à arte e à cultura, Emanoel Araújo liderou uma gigantesca reestruturação na Pinacoteca do Estado de São Paulo (um dos roteiros turísticos culturais da cidade) nos anos 90, transformando o prédio num dos principais museus do país, apto a receber grandes exposições nacionais e internacionais. Agora a Pinacoteca possui dinamismo para maior acesso público; no entanto, essa transformação não se limita apenas ao espaço físico do edifício, mas em seu ideal. Além de um museu, a Pinacoteca é um lugar para quem procura nutrir a mente e o espírito.